terça-feira, 3 de janeiro de 2006

A Janela (Maryalva Mix)



Madragoa Filmes | A Janela (Maryalva Mix)
Cinema Português | Edgar Pêra
Madragoa Filmes | Edgar Pêra

"António!" É com este grito que começa este filme, inigualável no panorama cinematográfico português. É este o grito que nos inicia num drama de faca e alguidar, que começa por uma facada, dada não se sabe bem por quem, no corpo de antónio, fadista luso e típico habitante de um bairro histórico da bica. Quem é António, e que é que lhe espetou a faca? O filme transporta-nos numa viagem onírica ao bairro da bica, habitat da estranha criatura que se chama antónio, um camalão comportamental com tantas dimensões quantos os olhares sobre ele. A mesma actriz representa seis tipos diferentes de mulheres, alicerçadas nos tipicismos dos velhos bairros lisboetas. A rebelde, a santinha, a peixeira, a fadista, marcada pela vida. Cada uma destas mulheres se relaciona com um mesmo antónio, mas que aos olhos delas é sempre diferente. Cada antónio representa vários aspectos do estereótipo do macho lusitano, desde o chico-espertismo (é só tanga) à preguiça (coitado, ele é fraquinho, trabalhar não é lá com ele...) ao machismo (ele sempre foi um homem de muitas mulheres e até ao pormenor da camisola branca de alças que deixa entrever o peito farfalhudo de pêlos decorados com um rotundo fio de ouro.

Este é talvez o olhar mais deprimente do filme, o olhar elitista dos cineastas e actores sobre os esterótipos do homem português. É o suficiente para transformar o filme de homenagem à vida e cultura em vias de extinção dos bairros populares numa brincadeira que se diverte à custa do zé povinho do século XX.

A genalidade de A Janela (Maryalva Mix) está na forma como foi realizado. A maioria dos filmes segue sempre um mesmo percurso previsível, em que a imagem está subordinada à história que se pretende contar. Neste início do século XXI, com quase um século de arte abstracta, a 7ª arte resiste ao abstraccionismo visual. Os grandes filmes da história do cinema, em boa medida, não o são. São bons argumentos, bons décors, bons efeitos especiais, boas representações dos actores. Os realizadores, independentemente dos seus talentos, são sequenciadores de imagens que são justapostas de uma forma completamente subjugada ao argumento. O que não quer dizer que sejam genais, em muitos casos. O talento de um Scorsese, de um Tati, de um Kubrick ou de um Spielberg transforma uma mera película de celulóide numa comunicação com múltplas camadas de sentido. Mas o cinema raras vezes se liberta do grilhão de arte representativa, concreta, em que a sua principal arma, a imagem, serve apenas para contar uma história. Quando o faz, caso típico das obras mais rebuscadas de Jean Luc Goddard, é liminarmente rejeitado pelos espectadores, o que não deixa de ser paradoxal.

A não linearidade e o abstraccionismo cinematográfico estão muito difundidas na cultura popular, embora de forma encoberta. Através do video musical, aqueles cuja mente se fecha, incapazes de reconhecer o cinema como uma sucessão caótica de imagens, aceitam perfeitamente que isto se passe num video. A música adoça as imagens...

A Janela (Maryalva Mix) foi realizada por Edgar Pêra, nome importante do panorama cinematográfico português, que se tem distinguido pelo seu experimentalismo e capacidade por criar cinema que vê mais além da mera história contada para alegrar ou entristecer o espectador. A Janela (Maryalva Mix) é uma viagem alucinante de duas horas, em que a retina é constantemente bombardeada por imagens quase aleatórias que se conjugam na nossa mente para erigir uma imagem quase cubista da história que o filme comunica. São múltiplas visões, por vezes desconexas, que se fundem no espaço do ecrã, batalhando entre si para comunicar o seu sentido.

Visualmente esplendoroso, de uma forma alucinada, A Janela (Maryalva Mix) é um filme genial, na minha humilde opinião. Possibilidades visuais que são meramente sugeridas em sequências mais esotéricas de alguns filmes (como a viagem pelo hiperespaço sugerida por Kubrick em 20001, um espectáculo alucinogénico de luz e cor) são aqui exploradas profundamente. O resultado é desconcertante, fascinante e altamente experimentalista.