terça-feira, 6 de dezembro de 2005

Para além do Infinito



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Two Views of 2001
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Por onde começar? 2001 é um filme tão complexo, que se presta a tantas interpretações, que é muito difícil escolher um foco. Há quem o despreze, considerando o filme como mais um desperdício de celulóide às voltas com tretas como viagens espaciais e o destino do homem. Há quem o considere uma experiência religiosa. Quanto a mim, na minha humilde opinião, considero-o apenas o melhor filme de ficção científica jamais realizado - não me posso pronunciar sobre Metropolis (ainda não consegui ver), mas é vastamente superior a bons filmes de FC como Dune ou Blade Runner (os pesos pesados da cinematografia de ficção científica) e, claro, está a séculos-luz de pastiches que se aproveitam do desconhecimento do público sobre o que é a verdadeira ficção científica (como os filmes da série Guerra das Estrelas - sorry, turmentus).

2001, escrito numa curiosa parceria entre Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke, é um poderoso diorama sobre um epifânico destino da humanidade nas estrelas. 2001 é um filme carregado de poderosas imagens visuais. Quase não tem um enredo, e os diálogos são esparsos e estranhamente banais. Mais do que simplesmente contar uma história de ficção, 2001 parece pretender que durante o tempo de duração do filme os espectadores se coloquem questões profundas sobre o nosso destino e o nosso universo. A banda sonora ajuda - o som mais característico do filme é a abertura de Assim Falava Zaratrustra, de Richard Strauss, inspirada na obra homónima do peso-pesado da filosofia que foi Friedrich Nietzsche. A ligação é clara - mais do que uma história sobre naves espaciais, é do sonho do homem que se trata. Qual sonho? Tantos... o sonho das estrelas, o sonho da eterna busca do conhecimento, que nos impele, como espécie (quase ia escrevendo raça, mas nestes tempos politicamente correctos esta é uma palavra que soa mal) a ir sempre mais além, esticando sempre as fronteiras do conhecimento disponível.

2001 começa, apropriadamente, na pré-história. Inicia-se com um segmento intitulado a aurora da humanidade, onde os nossos avós australopitecos são retratados como animais incapazes de pensamentos coerentes, até que a intervenção de um monólito misterioso, um artefacto claramente alienígena cuja função é desconhecida, parecendo funcionar como uma sentinela que averigua a existência de vida potencialmente inteligente, provoca uma explosão de conhecimento na mente dos australopitecos. O primeiro pensamento consciente, a primeira busca inteligente de conhecimento da humanidade foi a invenção de uma arma - que permite matar, defender territórios, e transformar os esfomeados australopitecos vegetarianos em seres carnívoros. Em seguida, Kubrick pulveriza milhares de anos de história humana, com um corte admirável - num instante, vemos um australopiteco a lançar no ar um osso, a sua arma, e no instante seguinte vemos uma nave espacial a afastar-se de nós na órbita terrestre. A nave é uma arma nuclear orbital, e a implicação é óbvia - milhares de anos de história humana e no fundo ainda somos macacos agressivos.



Neste segundo segmento do filme, sobre a descoberta na lua de um monólito enterrado sob o regolito lunar, Kubrick mima-nos com a mais bela cena do cinema de ficção científica - a aproximação do avião aero-espacial que transporta o cientista Heywood Floyd até à base espacial toroidal conjunta (americano-soviética) e o seu transbordo para um voo translunar que aterra (aluna, desculpem) na base lunar de Clavius. Kubrick, nestas cenas, pareceu iluminado. Em vez de mostrar as deslocações orbitais como vertigens explosivas de foguetões com os motores em máximo impulso, Kubrick entendeu os movimentos orbitais como aquilo que eles realmente são - uma graciosa dança espacial, em que a força gravitacional de cada corpo celeste afecta a deslocação de todos os corpos celestes no espaço sideral (é essa a razão pela qual as sondas espaciais destinadas a júpiter ou a outros corpos distantes do sistema solar andam para trás - são enviadas a vénus, para que a influência gravitacional do planeta lhes forneça impulso para chegarem mais longe, com um mínimo gasto de combustível - é o conceito de orbital slingshot). Ao som da conhecida valsa Danúbio Azul de Johann Strauss, vemos a graciosa dança das naves espaciais em gravidade zero. Ao chegar à lua, Heywood Floyd assume o papel de homem moderno, cientista e culto, que age como um macaco, protegendo de forma animalesca o seu território - a descoberta do monólito TMA-1 na lua é mantida em segredo das restantes potências com bases lunares.



O terceiro segmento do filme mostra uma missão de exploração a Júpiter. A bordo da nave Discovery, seguem dois astronautas, três outros tripulantes em hibernação, e uma inteligência artificial. HAL, o computador inteligente, é curisamente o mais humano dos personagens do filme - é o único que mostra os seus sentimentos, é o único que erra e que entra em depressão nervosa devido às suas falhas. Os homens agem como seres mecânicos que desempenham friamente as suas funções, enquanto HAl se emociona, sente empatia, e nos seus momentos finais, quando "morre", canta infantilmente uma rima infantil, que enche de tristeza os corações dos espectadores do filme. Neste terceiro segmento, HAL, o computador inteligente que controla todos os aspectos da missão espacial enlouquece e assassina quase todos os membros da sua tripulação - todos, menos Dave Bowman, o astronauta que está destinado a algo mais... grandioso. HAL surge aqui como a soma de todos os medos e de todos os sonhos informáticos - um super-computador cuja inteligência supera a dos seres humanos. E, mais do que simplesmente inteligente, HAL está consciente da sua inteligência, o que o leva a eliminar a tripulação humana da nave - as probabilidades de erro humano, no seu discernimento, são vastas e HAL é uma máquina orgulhosa da sua inteligência superior. Há uma outra interpretação - HAL é inteligente, consciente e inocente, mas é forçado a mentir aos tripulantes da nave sobre o verdadeiro objectivo da missão. O conflito entre a inocência inata de HAL e a sua obrigação de mentir provoca nele um conflito lógico que o leva ao assassínio. No entanto, Dave Bowman consegue desligar HAL, numa cena assombrosa, em que a mestria cinematográfica de Kubrick nos faz sentir pena da morte de uma personagem de ficção, que é uma máquina assassina.



No quarto segmento do filme entramos firmemente em território filosófico. Todas as ideias que andam a ser sugeridas ao longo do filme são aqui catalizadas, numa visão epifânica do destino da humanidade. Dave Bowman é informado acerca do verdadeiro objectivo da missão da Discovery: investigar um monólito descoberto na órbita de Júpiter. Apesar de estar só no meio do vazio espacial - Frank Poole, o seu colega, flutua à deriva pelo vazio espacial, e os restantes membros da tripulação dormem o sono eterno nos casulos de hibernação transformados em sarcófagos, Bowman persiste. Entra a bordo de um módulo de exploração, e parte da Discovery em direcção ao monólito. Aí... aí, tudo nos é recusado. O tapete é retirado debaixo dos nossos pés. Tudo o que esperávamos não se concretiza, e o que vemos ultrapassa as fronteiras da nossa imaginação. Bowman aproxima-se do monólito, e cai numa espécie de portal espacial. Os vinte minutos seguintes são um espectáculo abstracto de luzes e cores. Nada de túneis no espaço, nada de zooms para o hiperespaço. A transformação de Bowman ocorre num espectáculo psicadélico que mesmeriza o nosso cérebro, habituado a fazer sentido do que vê. Quando tudo estabiliza, Bowman vê-se e é o seu futuro. Numa cena eminentemente surrealista, Bowman envelhece num estranho quarto cheio de luz, decorado com objectos do século XVIII. Há quem veja nesta cena Bowman confinado a uma espécie de jardim zoológico intergaláctico. Ao morrer, Bowman vê pela última vez um monólito. A morte de Bowman origina um novo ser, uma criança das estrelas, um feto consciente que se aproxima do planeta terra. A humanidade, velha de 70000 anos de história, não passa de um bébé nos vastos confins do espaço profundo. Apesar de mal termos gatinhado para fora do nosso planeta, o nosso destino é claro - expandir a nossa inteligência e o nosso conhecimento, transmutando-nos como espécie através do espaço galáctico.



2001 é um filme de filosofia pesada. Mas não é só este aspecto que transforma 2001 numa obra prima cinematográfica. Técnicamente, é um filme perfeito - os efeitos espaciais, criados numa época em que a ideia de animação digital não passava de um sonho, são fabulosos. A sincronia entre a música e as imagens é perfeita, com o bailado espacial ao som do Danúbio Azul a reforçar esta ideia. E, coisa rara até nos melhores filmes de ficção científica, é científicamente correcto. As naves espaciais são perfeitamente plausíveis - Kubrick, Clarke e os técnicos de efeitos especiais trabalharam de perto com engenheiros da NASA na concepção de todos os ambientes de exploração espacial. O aspecto das naves espaciais, a concepção da estação espacial, as bases lunares - tudo é verosímil, e espelha os projectos de exploração espacial dos anos sessenta. 2001 projecta efectivamente no futuro, um futuro próximo, o mundo futuro imaginado em 1960. Para mais, em todos os segmentos passados no espaço, há uma constante: o silêncio. O espaço é um vácuo - nele não se propaga o som, e não há particulas que difusam a luz. O espaço é negro e silencioso. Quando vemos as cenas passadas na Discovery, quando os astronautas saem da nave, não ouvimos aquilo que esperamos. Ouvimos apenas a respiração dos astronautas nos seus fatos e um zumbido minimal dos sistemas eléctricos. Não há um violento tonitruar dos potentes motores da nave. Apenas silêncio. Há só duas incongruências científicas no filme - quando vemos a Discovery no espaço, as estrelas movem-se. Na verdade, na realidade, se olharmos para uma nave espacial a mover-se no espaço, as estrelas estão estáticas, pois a distância entre elas e a nave é demasiado grande para que se dê a noção de movimento. A outra incongruência tem a ver com a iluminação das naves espaciais.

2001 tem uma génese curiosa. A sua base é um conto de Arthur C. Clarke, The Sentinel, sobre um objecto criado por uma civilização extra-galáctica que vigia a espécie humana. O argumento foi escrito a dois por Clarke e Kubrick, e deu origem a uma série de romances de ficção científica - 2001, 2010, 2061 e 3001, que com a prosa fria e futurista de Clarke exploram a fundo a ideia da humanidade a espalhar-se pelo espaço. Mas se Clarke termina 2001, o romance, com a criança das estrelas a detonar todas as armas nucleares orbitais, Kubrick termina 2001, o filme, com uma epifania sobre o sonho do futuro da humanidade.

2001 é, sem dúvida, o melhor filme de ficção científica de todos os tempos. Mesmo em 2005, vendo que nem metade das previsões do filme se concretizaram (mas também, esse pormenor não é o mais importante) - onde estão as bases lunares, e as missões tripuladas a Júpiter, e se não temos mainframes superinteligentes, temos pda's e computadores portáteis, o filme não perdeu a sua frescura e o seu sentido de futuro.