sábado, 3 de dezembro de 2005

Misery



Misery, de Stephen King. Edição Temas & Debates, 2001
Stephen King
Stephen King - Misery

Ter fãs dedicados é a pior coisa que pode acontecer a um escritor famoso. Parece paradoxal - todos os entertainers, quer da palavra escrita quer das imagens em movimento ou dos sons populares se alimentam da força vital dos seus fãs, essa legião alucinada que compra todos os discos ou todos os livros e que vive o dia a dia suspensa das palavras dos seus ídolos. Mas, após ler Misery, só conseguimos pensar no perigo para um autor que é ter um fã perdidamente apaixonado pelas suas palavras.

Misery introduz-nos a Paul Sheldon, escritor famoso e de sucesso de dramas delicodoces em que a personagem principal, Misery, lhe granjeou uma legião de leitoras fanáticas que decoram as suas casas com os motivos decorativos da era vitoriana dos romances e que aguardam ansiosamente a publicação de mais um livro de aventuras e desventuras de Misery. Apesar do seu sucesso, Paul está descontente. Paul sonha em ser um escritor de renome, aplaudido pela crítica e digno de figurar no panteão dos grandes escritores de todos os tempos. Mas está marcado pelo sucesso dos seus romances delicodoces, o que lhe garante o desprezo da comunidade literária mais intelectual. Paul começa a odiar Misery, personagem que lhe garantiu o sucesso financeiro mas que o afasta do sucesso literário. Numa decisão corajosa, decide alterar tudo. Escreve um último livro sobre Misery, em que esta morre no final desta vez infeliz. Após terminar este último livro, encerra-se num quarto de hotel e faz nascer por entre as batidas das teclas da máquina de escrever o seu primeiro esforço literário sério. Eufórico, após ter terminado o livro da sua vida (o primeiro de muitos, espera), o livro, aquele que lhe irá granjear uma justa reputação como escritor sério, entra no carro e faz-se à estrada numa viagem comemorativa. E é aqui que tudo começa a correr mal.

Eufórico e acoolizado, Sheldon estampa o seu carro numa estrada isolada do colorado. Quando acorda, descobre que foi salvo dos destroços por uma ex-enfermeira, Anne Wilkes, que o leva para sua casa (uma quinta isolada nos arredores de uma cidadezinha do midwest) e tenta tratar dele. Anne Wilkes confessa-lhe ser a sua fã número um, leitora assídua e ansiosa de todos os livros de Misery, e está perfeitamente delirante pela oportunidade de tomar conta do seu ídolo, o grande escritor dos livros de que tanto gosta.

A questão está no espírito de Anne. Anne é uma mulher altamente perturbada, uma psicótica alucinada que quando exercia a profissão de enfermeira foi responsável pelo assassínio de dezenas de pacientes. Apanhada mas nunca considerada culpada, Anne isola-se na sua quinta, sózinha contra um mundo que, no entender dela, está cheia de pessoas que a querem prejudicar.

Às mãos de Anne Wilkes, Paul Sheldon sofre uma profunda descida aos infernos. É espancado, humilhado, confinado a um quarto isolado, torna-se dependente dos comprimidos analgésicos que Wilkes lhe fornece, é-lhe amputado um pé e um dedo da mão, a frio, entre muitas outras sevícias que uma elouquecida Anne Wilkes, em profunda queda na loucura assassina, sujeita o indefeso Sheldon. Para piorar, Wikes, fanática dos livros de Misery, obriga-o a destruir a sua obra literária, o trabalho mais profundo que Sheldon havia criado. Em seguida, descontente com a morte ficcional de Misery, obriga Sheldon a escrever um novo livro, um regresso de Misery. Paradoxalmente, este torna-se o melhor livro da série, escrito com um tom negro que espelha o horror do dia a dia de Sheldon, confinado com a loucura da sua fã número um.

Stephen King dispensa apresentações. É um dos principais autores de ficção de terror contemporânea, autor de uma extensa bibliografia, entre os quais se contam The Shining, It, Cujo, Pet Semetary ou Carrie. É um perfeito protótipo do autor de best sellers americano, escritor de escrita aparentemente fácil, capaz de publicar um livro de oitocentas ou mais páginas por ano. Stephen King pertence àqueles autores que são verdadeiros prazeres secretos. Por um lado, desvalorizamos os seus trabalhos, pois são redutores, limitados e de arrepio fácil. Para além disso, arrastam-se, arrastam-se de página em página de volumosos livros de bolso. Por outro lado, ficamos fascinados com as suas palavras macabras ou retratos da loucura humana ou sobre-humana. Na verdade, quando pegamos num livro de Stephen King, só o voltamos a pousar quando viramos a última página e soletramos a palavra f-i-m.

Mundialmente bem sucedido, King não é muito lido em portugal, à excepção dos fãs de literatura de terror e fantástico. A verdade é que o público-alvo dos livros de Stephen King, que apesar de serem de terror são de um terror mainstream, acessível a todos, anda demasiado ocupado a ler literatura light ou o último romance pseudo-literário do autor da moda, e nunca se deixaria apanhar com uma obra menor nas mãos (embora devorem as obras daqueles escritores que, em quinhentas ou seiscentas páginas, conseguem uma frase que diga algo de novo, e na maioria das vezes nem com palavras se safam).

Misery contém um subtexto interessante: não é difícil trocar Paul Sheldon por Stephen King (um tema recorrente das suas obras é a do escritor falhado ou com dificuldades para escrever um livro), autor que deseja ascender aos píncaros literários, mas que, algemado a uma legião ululante de fãs que lhe exigem mais do mesmo, sempre mais do mesmo, mais e mais literatura fácil de arrepio banal, uma legião personificada na personagem de Anne Wilkes. Toda a história é um conto de tortura, da tortura infligida à alma de um escritor pelos fãs e pelo mercado, sedentos da vitalidade e da imaginação do escritor, e capazes de o dilacerar para continuarem a sugar as suas ideias.