domingo, 6 de novembro de 2005

O Privilégio do Insulto

Na Visão de 27 de outubro, uma reportagem sobre as greves que se preparam na funcão pública e sobre o descontentamento geral que se vive graças às políticas económicas do governo reproduziu uma fenomenal declaração do presidente da Confederação da Indústria Portuguesa, Francisco Van Zeller, que passo a citar:

"Quantos mais protestos houver na rua, mais o governo mostra firmeza. As manifestações têm sido relativamente vistosas, mas não têm afectado a economia. Aliás, até se poupa dinheiro com os dias das greves. É que as pessoas trabalham tão pouco, que nem se nota quando fazem greve."

Normalmente mantenho um certo nível neste blog, mas perante estas afirmações, o melhor que me ocorre é sugerir ao sr. Van Zeller que enfie um pau muito longo por um sítio que eu cá sei acima. Tais declarações apenas exprimem o desprezo de um grande patrão pela maioria dos cidadãos deste país - aqueles que trabalham, aqueles que, mal pagos, aguentam a carga de impostos que muito possívelmente subsidia o negócio do sr. Van Zeller. É fácil apontar o dedo às ineficácias da função pública e acusar os funcionários públicos de serem uma élite de preguiçosos, sanguessugas dos dinheiros públicos. Não me surpreende que Van Zeller questione a necessidade de serviços públicos - com os seus médicos privados, colégios privados para os filhos e advogados sabedores das entranhas legais que facilitam as fugas de capitais em nome do lucro puro, certamente que se pergunta para que é que são precisos hospitais públicos e escolas públicas. Deveriam ser privatizadas, e os pobres até teriam melhor acesso a estes serviços, se trabalharem mais, de preferência com cortes no salário mínimo (outra inutilidade - todos sabem que os empregados deviam era pagar para trabalhar).

Quem é este Van Zeller? Nunca percebi. Só aparece em público como o presidente da Confederação da Indústria Portuguesa, de maneira que não se sabe do que precisamente ele é industrial. Provávelmente de uma daquelas empresas especializadas em produzir documentos que atestam a sua quase falência enquanto exportam lucros para as ilhas caimão, que paga mal aos funcionários por longas horas de trabalho e não permite veleidades como licenças de maternidade, faltas por doença ou pagamento de horas extraordinárias. Tudo em nome da produtividade que se traduz em grandes luxos para a classe dirigente e os seus sequazes, e cada vez maiores dificuldades para uma classe média que, um dia, teve a veleidade de imaginar um futuro mais justo.

As medidas do governo são, infelizmente, necessárias, senão toda a economia e o sistema de pensões corre o risco de entrar em colapso. O que nos irrita, é ver que nos são exigidos sacrifícios sem que haja reciprocidade - os privilégios dos políticos continuam os mesmos, a desavergonhada fuga de capitais através do private banking alastra, e os compadrios de alto nível continuam. Um exemplo: todos sabem os milhões de euros de prejuízos causados aos cofres do estado pelas grandes obras cujo orçamento é ultrapassado em duas ou três vezes mais o seu valor original. No entanto, as empresas que se comprometeram a cumprir um serviço por um determinado orçamento, o ultrapassaram, causando prejuízos tremendos ao erário público, nunca são investigadas, nunca são alvos de auditorias, nunca são responsabilizadas pelas derrapagens orçamentais e voltam sempre a ganhar concursos públicos para obras que já se sabe que irão sofrer derrapagens orçamentais (em compensação, para poupar dinheiro, as carreiras da função pública são alteradas).

Ainda por cima, depois de tudo isto, ainda temos o privilégio de ser insultados pelo Sr. Van Zeller e a sua igualha.