domingo, 16 de outubro de 2005

O Mortal Imortal

O Mortal Imortal, de Mary Shelley

O Mortal Imortal
Mary Shelley
Cornelius Agrippa

Quem não gostaria de viver para sempre? Escapar à morte, ver o mundo passar, evoluir, as rodas do tempo a rodarem enquanto se goza profundamente o melhor de todas as épocas? Por estranho que pareça, Winzy, o protagonista deste conto clássico de Mary Shelley, torna-se imortal sem que se aperceba disso.

Winzy é apenas um apelido afectuoso. Nunca saberemos o verdadeiro nome deste imortal, que, ao fazer os seus trezentos anos, prepara-se para tentar terminar a sua imortalidade solitária entre os gelos e os picos de uma montanha.

Na sua juventude, este imortal fora um estudante sem um tostão que se apaixonara por Bertha, uma bela orfã, desde os mais recônditos dias da sua infância. O infortúnio deste amor era uma velha e rica senhora, a aristocrata da aldeia, que se condoera com o sofrimento de Bertha e a arrancara à pobreza, levando-a para viver consigo no seu castelo. Esta velha senhora não via com bons olhos este amor; preferia casar Bertha com algum jovem de posses e riquezas.

Bertha, ao ver-se transplantada do casebre para o palácio, torna-se uma verdadeira coquette, namorando todos os ricos pretendentes que a senhora do castelo encorajava, embora nunca tivesse deixado de amar Winzy. Mas a este, o seu amor, exigia as maiores provas de dedicação, e atormentava-o com insinuações sobre os seus outros pretendentes. Este jogo pouco inocente deixava a alma de Winzy em profundo desespero. Irremediávelmente apaixonado, enlouquecido de ciúmes, Winzy chega a desejar esquecer o amor.

Sendo um estudante humilde, Winzy não dispõe de riquezas. Tem de trabalhar para viver, e encontra emprego como ajudante de um alquimista, nada mais nada menos do que Cornélio Agrippa, alquimista lendário, verdadeiro protótipo do físico e do químico dos nossos dias, apostado em desvendar os segredos da natureza com o poder da alquimia, quebrando os profundos segredos graças à força dos seus instrumentos alquímicos e do fogo do seu cadinho. Agrippa trabalha febrilmente numa nova poção, e quando se aproxima o fim do longo trabalho, deixa Winzy a tomar conta da reacção química, avisando-o de que não deve tomar a poção. Nas palavras de Agrippa, a poção serve para curar a alma humana do amor.

Atormentado pelo seu amor por Bertha, Winzy aproveita um momento em que Agrippa adormece para levar a poção aos lábios, determinado a esquecer o seu amor. Bebe um pouco, e, nesse momento, acontece um desastre. Agrippa acorda, sobressaltado Winzy, que deixa cair no chão o frasco com a poção. Agrippa vê assim toda as suas esperanças despedaçadas, pois a poção era nada menos do que a poção que lhe iria conferir a imortalidade desejada. Mas não culpa Winzy, ignorante de que este lhe bebera um pouco da poção antes de esta ser destruida.

Dias depois, um determinado Winzy visita o palácio onde vive Bertha, determinado a acabar com o amor. Mas ao vê-la, descobre-se ainda mais apaixonado, e ganha forças para enfrentar todos e levar Bertha consigo, para finalmente viver o amor que há tanto tempo lhe era negado. Winzy atribui a sua coragem à poção que tomara.

Os anos passam, e algo de peculiar começa a fazer-se notar. A beleza de Bertha desvanece-se com os anos. Mas Winzy mantém-se sempre novo, cheio da energia dos vinte anos. No seu leito de morte, Agrippa conta a Winzy o verdadeiro conteúdo da poção, amargurado com a imortalidade que lhe escapara. Mas Winzy não acredita em Agrippa. Imortalidade, pensa, não é possível. Quando muito, longevidade.

O tempo passa. Bertha envelhece cada vez mais, os seus cabelos enbranquecem, o seu belo rosto cobre-se de rugas. E Winzy mantém sempre novo, com o vigor dos vinte anos, sem sequer envelhecer mentalmente.

A imortalidade tem um preço. Esse preço é ver o tempo a levar inexorávelmente todos aqueles que amamos. É ver o tempo a transformar irremediávelmente o mundo que conhecemos, até que sentimos que já não temos casa, que não temos lugar. Há medida que o tempo passa e a morte não liberta o imortal, cresce nele o seu desespero e a sua solidão. O grande sonho da humanidade, libertar-se da morte, torna-se num pesadelo amargo para quem o vive.

Os leitures mais atentos e cultos deste blog reconhecerão certamente Mary Shelley como a autora de Frankenstein e a filha de Mary Wollstonecraft, autora de A Vindication of the Rights of Women e avó de todas as femininistas. Mary foi também a amante de Byron, aquele poeta que morreu românticamente afogado ao tentar atravessar a nado o estreito de corinto, para se juntar aos partisans gregos na sua guerra de libertação contra o jugo turco, e antes disso escreveu um livrinho simpático sobre Sintra. Também foi a mulher de Percy Bisshe Shelley, outro dos grandes poetas ingleses, e se este franco conhecimento sobre a vida sexual de Mary Shelley vos chocar, lembrem-se que, sexualmente, nós ainda não inventámos nada que os nossos avós não tivessem experimentado (excepto, talvez, o látex). É de referir que Shelley sabia perfeitamente que Mary andava enrolada com Byron. O próprio Shelley andava enrolado com um outro poeta de cujo nome neste momento não me recordo. Estes pequenos detalhes relembram-nos que os nossos antepassados não eram nem de longe os puritanos que julgamos.

Na vida de Mary Shelley, há uma noite que é lendária. Foi a noite de tempestade em que, fechada num chalet suíço com um grupo de amigos, foi lançado o desafio de criar uma história capaz de criar pavor. Do grupo, Percy Shelley pouco mais conseguiu do que a inspiração para o poema Prometheus Unbond. Byron, que lançara o desafio, também não foi bem sucedido, tendo-se ficado pela criação de Fragments of a Novel. Outro dos convivas, John Polidori, escreveu O Vampiro, a história percursora que iria inspirar um romance publicado quase um século mais tarde, o Drácula de Bram Stoker. Por sua vez, Mary Shelley criou o esqueleto da sua mais famosa obra, Frankenstein.