domingo, 2 de outubro de 2005
Mr. Sandman, bring me a dream...
The Art of Dave McKean
Neil Gaiman
The Sandman (Silver Age)
The Sandman (Golden Age)
Há livros que são intragáveis. Por maior que seja o esforço em mastigar as palavras e saborear os parágrafos, a coisa não se consegue. Não vai, não se engole. Outros livros há que se devoram. As primeiras frases despertam em nós uma fome devoradora que nos leva a deglutir todo o livro em tempos recordes, querendo sempre mais e mais para devorar e saciar a nossa fome. E há livros que são uma delícia. Esses não se devoram, saboreiam-se langorosamente, com leituras delongadas e pachorrentas. Cada frase é lida tranquilamente, e o livro fica tempos eternos na mesa de cabeceira, entre leituras, só para nos recordar que está lá, para nos recordar o prazer que nos dá lê-lo, e que, como uma delícia que se preze, tem de ser suavemente degustada. Umas páginas de cada vez. Bem lidas, saboreando tranquilamente cada uma das palavras, pensando e repesando cada ideia, deixando passar tranquilamente tempo entre leituras, tempo esse em que se recorda com prazer os bons momentos que o livro nos proporciona.
Foi a pensar nisto que deixei a belíssima tradução dos contos de Lovecraft a repousar sobre a mesa de cabeceira e dediquei o fim de semana à leitura integral dos comics The Sandman, cujas setenta e cinco edições se encontram editadas em ordem cronológica, com dez volumes de maravilhosa banda desenhada.
The Sandman teve já três encarnações: nos anos 40, durante a Golden Age of Comics, foi um comic de super-heróis, de mistery men, semelhante a outros no género. Um homem, sem superpoderes mas obcecado pelo combate ao crime, veste um uniforme e combate todo o género de criminosos com a ajuda dos punhos e de algumas armas não letais. Faz lembrar o batman, não faz? Se bem que a inspiração para The Sandman tenha vindo de The Shadow, o famoso combatente do crime publicado nos pulps dos anos 40. Este Sandman, o alter-ego de Wesley Dodds, milionário obcecado por sonhos que o forçavam a combater criminosos, vestia-se com uma simples gabardine e uma máscara de gás típica da primeira guerra mundial. A sua arma era uma pistola que disparava dardos de gás que adormecia instantâneamente os criminosos contra quem lutava. Personagem típico da década de 40, perdeu-se nos arquivos da DC Comics até ser repescado nos anos 80, aquando da publicação do épico Crise nas Infinitas Terras. O sucesso do The Sandman mais recente levou a DC/Vertigo (a editora de comics adultos da DC) a relançar o título em que este Sandman original aparecia, The Sandman Mistery Theatre.
Há uma outra encarnação de The Sandman, esta durante a chamada Silver Age of Comics. Durante os anos sessenta e setenta, os comics passaram por uma fase fabulosa, em que a simplicidade linear dos primeiros títulos de super-heróis e histórias de detectives foi suplantada por uma revolução estética que se reflectiu numa nova imagética, novos personagens e histórias mais profundas (mesmo levando em conta que a grande maioria dos comics não é famosa por ser profundamente literária). Foi esta a época de Neal Adams a desenhar, elegantemente, um Batman em plena fase kitsch, foi a época de Jack Kirby com os seus personagens quase míticos (os infinitos, os inumanos, apokolips e nova génesis), foi a época das brilhantes ilustrações de Jim Steranko, que quase tocavam o surrealismo. Desta encarnação sei muito pouco. Aparentemente, o ambiente detectivesco do Sandman dos anos 40 foi descartado; este Sandman dos anos 60 é um super-herói, de uniforme garrido, que protege os sonhos das crianças de pesadelos malvados. Nítidamente infantil, foi rápidamente esquecido.
O que me leva à terceira, e mais brilhante, encarnação de The Sandman. Nos anos 90, Neil Gaiman foi encarregado de desenvolver esta personagem esquecida nos arquivos da DC Comics. Gaiman esqueceu tudo o que The Sandman era. O caçador de criminosos de motivações dúbias dos anos 40 foi quase esquecido; no seu lugar, Gaiman criou toda uma mitologia fantástica, que se cruza com as mitologias históricas e as mitologias das personagens da DC Comics ligadas ao oculto. Tudo gira à volta de The Sandman, Morpheus, Oneiros, Sonho, um dos sete infinitos, senhor dos sonhos. Ao longo dos setenta e cinco números do comic, a história deste Sandman conduz, inexorávelmente, à sua morte, ou melhor, à morte de um ponto de vista.
É melhor parar por aqui; falar de The Sandman pede mais do este simples post.
The Sandman é, possívelmente, o melhor comic jamais publicado. A qualidade dos argumentos de Gaiman era tal que The Sandman foi o primeiro e único comic a ganhar um prémio Hugo na categoria de fantasia, o que provocou um burburinho apreciável nos campos da FC e Fantasia - os prémios Hugo servem para premiar obras literárias, não comics. Se bem que foi um prémio merecido: esse número de The Sandman é brilhante, uma adaptação da peça Sonho de uma Noite de Verão de Shakespeare, com a companhia de Shakespeare a representar as aventuras e desventuras de Oberon e Titânia, reis do povo das fadas, perante uma plateia do... povo das fadas, muito bem ilustrado por Charles Vess.
The Sandman lançou a carreira de Neil Gaiman, até à altura um semi-obscuro argumentista de comics britânico, e a de Dave McKean, seu colaborador de longa data, e autor das capas e ilustrações de todos os números de The Sandman. As capas de The Sandman são verdadeiras obras de arte, que ultrapassam muito os limites das capas de um qualquer comic. Só é pena que a ilustração da banda desenhada fique aquém das capas - tirando excepções, mas temos que levar em conta que os comics não funcionam nos mesmos moldes da banda desenhada europeia - são uma industria, que tem de publicar um novo número todos os meses. Após The Sandman, Gaiman converteu-se à literatura - publicou os excelentes romances do género fantástico, Stardust, Neverwhere e Coraline, o divertido Good Omens, escrito em conjunto com Terry Pratchett. Estou à espera que alguma editora portuguesa traduza o American Gods, e Anansi Boys, este acabadinho de sair. Dave McKean continua a dedicar-se à BD e ilustração, e estreou recentemente um filme de animação criado em conjunto com Gaiman, Mirrormask, um filme que eu imploro que estreie em portugal - a combinação do talento literário de Gaiman com o talento gráfico de McKean (um daqueles artistas cujo trabalho me deixa roído de inveja), como se comprovou em The Sandman, ou no belíssimo livro infantil O Dia em que troquei o meu Pai por dois Peixinhos vermelhos, ou as bandas desenhadas clássicas Violent Cases e Mr. Punch costuma resultar em trabalhos demolidores, visualmente fascinantes e com histórias que ecoam no mais fundo da nossa alma.
Gaiman está a ser editado pela Editorial Presença, com Stardust e Neverwhere na sua colecção de Ficção Científica e Fantasia e Coraline na colecção de livros infantis. A Devir está a editar os dez volumes da colecção The Sandman - o primeiro volume, The Sandman: Prelúdios e Nocturnos, anda pelas livrarias, e é de leitura obrigatória. O Dia em que troquei o meu Pai por dois Peixinhos vermelhos foi editado pela Vitamina BD com uma intensa fidelidade ao seu grafismo arrebatador.