terça-feira, 20 de setembro de 2005

Inteligência, à escala universal



Presença | A Mente do Universo

A Mente do Universo, Ian Stewart e Jack Cohen, Editorial Presença, Colecção Viajantes no Tempo, Lisboa, 2005

Antes de me perder nas intricadas e fascinantes ideias deste livro, vou já despachar uma coisinha, e dizer que este livro é de leitura bastante entediante. Tristemente constatei este facto, ao demorar tempos infindos a ler este livro. Como os bons bibliófilos bem sabem, há livros que se devoram, outros que se saboreiam, alguns que se engolem por obrigação, e uns que são tão rijos que têm de ser mastigados durante muito tempo. Infelizmente, A Mente do Universo pertence a esta última categoria. O desinteresse do livro tem a ver, parece-me, com alguma falta de talento literário dos autores ou com uma tradução pouco cuidada. Ao ler este livro, o sentimento generalizado é o de pisar ovos; nunca mais se chega ao fim do parágrafo, nunca mais se vira a página, nunca mais termina o capítulo. E é pena, porque este é um dos mais interessantes livros de Ficção Científica que li nos últimos tempos.

Quase por definição, a Ficção Científica é fácilmente caracterizável e compartimentalizada. Temos a space opera, o cyberpunk e as suas variantes (ribofunk e steampunk), as realidades alternativas, as histórias simplistas de aventuras no espaço sideral (que é o que todos os não conhecedores de FC pensam que é a FC), os futuros pós-apocalípticos, os híbridos, que misturam surrealismo com FC, e mais algumas categorias que neste momento me escapam. A Mente do Universo não cabe em nenhuma destas.

À partida, tudo parece simples. Num universo expandido, habitado por míriades de raças, das quais a humana é uma simples minoria, temos uma luta entre uma religião em expansão e aqueles que resistem à influência dos memes benevolentes da religião, distorçidos numa ideologia de amor assassino. Por si só, este livro já encerra uma forte quantidade de ideias, desde a noção não expressa de singularidade à teoria de memes, num panoram digno das mais exóticas space operas repletas de estranhas criaturas sentientes e planetas exóticos, embora científicamente correctos: os autores são, antes de mais, cientistas. Neste livro não temos homens-pássaro. Temos, sim, criaturas dotadas de inteligência, cuja inteligência e aspecto físico foram moldados pelo ecossistema em que evoluíram. Passo a explicar: da teoria de memes já falei algures aqui no blog. Tratam-se de fragmentos de ideias que parecem evoluir de maneira semelhante à evolução biológica, transmitindo-se viralmente através da linguagem. Aqui os autores expressaram no livro uma ideia interessantíssima: a de que uma religião não passa de um conjunto de memes organizados, o que tem toda a lógica se observar-mos que qualquer religião assenta num conjunto de ideias (os mandamentos, os versos do corão, entre outros exemplos) que isolados não passam de memes comuns (não matarás, por exemplo) e organizados fornecem inspiração para vaticanos e bombistas suicidas, enquistando-se no tecido social e assegurando assim a sua sobrevivência. A Singularidade é um conceito novo mas já bastante batido em FC: a noção de que o progresso tecnológico, ao acelarar-se cada vez mais, conduz inevitávelmente ao colapsar da sociedade que o sustenta. No entanto, embora a sociedade se desmorone, os artefactos produzidos e as ideias e conhecimentos criados não desaparecem; alimentam novas e exóticas sociedades, que por sua vez se dirigem acelaradamente ao ponto de colapso cognitivo. Esse ponto, esse buraco negro cognitivo, é a singularidade.

A tecnologia subjacente a todo o livro, embora utilizada por todas as espécies que habitam o universo, assenta em artefactos mal conhecidos de uma tecnologia criada por uma civilização percursora, avançadísisma mas agora extinta. Algo no livro parece indicar que essa civilização teria sido a humana - talvez um pouco de geocentrismo, apimentado por alguns dos personagens mais importantes do livro, neandertais genéticamente modificados que teriam sido libertados na galáxia à muitos séculos atrás, após serem escravos de uma civilização desconhecida, a juntar à raridade dos homo-sapiens (em todo o livro, só se fala de um). Mas, no livro, isto não passa de uma ideia no ar, que nem chega sequer a ser sugerida. A tecnologia percursora é desconhecida, e assenta em artefactos descobertos por acaso em planetas e em naves orbitais abandonadas. Nenhuma das civilizações que utiliza esta tecnologia chegou a um nível semelhante ao dos ignotos percursores.

Só estas ideias eram suficientes para gerar uma parga de belíssimas obras de FC. Posso fácilmente lembrar-me de algumas que assentam em premissas mais simples do que aquelas que aqui já expus (por exemplo, uma forma de vida alienígna chega à terra sob a forma de plantas, que ao desenvolverem-se tornam-se carnívoras e provocam o colapso da sociedade - eis As Crisálidas, um clássico da FC do britânico John Wyndham). Mas os autores de A Mente do Universo não se ficariam por coisas tão simplistas.

A verdadeira história subjacente a A Mente do Universo anda às voltas com a noção de mente cognitiva. A luta entre o meme abrangente e unificador que transforma a diversidade cultural em monocultura e as sociedades que tenta absorver é personificada entre a guerra entre uma poderosa frota espacial de um império eclesiarca que abrange a galáxia e a espécie inteligente de um planeta, que à primeira vista parece ser uma espécie de moluscos individuais mas que se revela como sendo as fêmeas destes moluscos, simples pólipos de coral que ao agregarem-se em recifes criam uma mente assente numa rede neuronal à escala planetária (ponto de exclamação, correcto?). Os neandertais, habitantes de uma nave inteligente que se gere por consenso ético, funcionam como uma espécie salvadora, transladando alguns fragmentos de coral e os respectivos maridos para um planeta desconhecido e isolado nos confûndios da galáxia, a pedido de uma mente de coral que sabe que as suas possibilidades de sobrevivência no seu planeta são nulas, mas que não pretende submeter-se aos memes da religião universalista.

Neste novo planeta, as coisas complicam-se. Desconhecido por todos, este planeta alberga uma instalação secreta que encerra um céu virtual onde habitam os eclesiarcas que dominam a hierarquia de topo da Igreja da Unidade Universal (o tal meme assassino). Nessas instalações, o único personagem humano deste livro, jovem crente fiel nos dogmas da unidade universal, está a treinar-se para se tornar um alentador de almas, mistura tenebrosa de inquisidor com missionário, que não deve hesitar em torturar até à morte os infieis, para que estes reconheçam a beleza e o amor contidos na mensagem da igreja (notam, certamente, o paradoxo). As questões morais levantadas pelo uso da tortura, conjugadas pelo conhecimento do que é o verdeiro céu, levam a que este jovem acólito se rebele perante a hipocrisia de uma religião que prega o amor na ponta de uma ogiva termonuclear. O céu em questão não passa de uma realidade virtual consensual (lembram-se dos filmes da série Matrix) onde estão imersas todas as pessoas de um planeta. Para que se torne simples gerir estes céus, as pessoas são desincorporadas - os seus padrões de personalidade são artificialmente mantidos, e os seus corpos, literalmente, despedaçados em massas de carne informe, mantidos vivos por robots semi-inteligentes.

O planeta isolado onde se situa o mosteiro da religião univeral e que será colonizado pelos polipoides da mente do recife alberga também uma estranha criatura inteligente, que apenas consegue comunicar através de mensagens químicas (preparem-se para um salto conceptual). A criatura inteligente é um lago. Sim, leram bem, um lago, com o seu ecossistema de algas, peixes e anfíbios. os componentes do ecossistema não são inteligentes; funcionam antes como os neurónios da mente do lago. As suas vidas, as suas acções, são as sinapses dos pensamentos do lago.

Este lago inteligente vai permitir aos personagens de A Mente do Universo um novo salto conceptual: a noção de Galáxia como uma entidade inteligente, em que as espécies e vida funcionam como as sinapses dos pensamentos da galáxia. Já perderam o fólego? Preparem-se, que vem aí mais.

Imaginemos que a mente da galáxia sofre de uma doença mental. É, simplesmente, paranóica, e considera que a vida que pulula no seu interior é uma doença, um cancro a ser erradicado (embora a vida seja o que lhe confere a inteligência). O meme destruidor propagado pela religião universal, que assenta na profunda distorção de ideais de bondade e caridade, é o reflexo desse pensamento universal, que tenta aniquilar a vida na galáxia. Modificando-se meme, voltando a contemplar a base de bondade que o meme encerra, e libertando-o da visceralidade anti-vida que o distorce, cura a doença mental da galáxia. São esses os acontecimentos que se conjugam em A Mente do Universo. A ameaça do meme universal, a resistência a este meme que propicia a descoberta de novas formas de inteligência que têm conhecimento da mente da galáxia, e o salto conceptual dado por um crente no meme que consegue libertá-lo de tudo o que tem de mau.

No fundo, a filosofia subjacente ao livro resume-se a isto: o que aconteceria se as acções dos humanos fossem os reflexos dos pensamentos do planeta, tal como a actividade eléctrica dos nossos neurónios são o reflexo que gera os nossos pensamentos? Ampliando a ideia a uma escala universal, e se a "vida" do cosmos, a diversidade de estrelas e fenómentos cósmicos, os planetas, asteroides, constantes físicas, buracos negros, nebulosas, não passassem das sinapses dos neurónios do cosmos? Inteligência, à escala universal.

Se esta noção de inteligência à escala do universo vos parece uma ideia perfeitamente estapafúrdia, das mais irrelevantes que a Ficção Científica produz, façam-vos um favor antes de largarem a rir que nem uns perdidos com uma ideia que parece inerentemente estúpida. Googlem sobre o trabalho de James Lovelock e a sua hipótese Gaia. Uma pista: Lovelock é biólogo e ecologista, e a sua hipótese gaia postula que o planeta terra é análogo a um organismo biológico. Mais não digo, que isto os dedos já me doem de tanto escrever.