Mais uns parágrafos desta criatura que está a nascer sob o meu teclado. Não é demasiado entediante, espero.
Na mente inocente dos meus anos de meninice, geraram-se assim as variáveis da equação que hoje me leva a contemplar o ecrã onde o sol, o sol terrestre, se revela como um ponto, mais um ponto brilhante no meio do oceano negro do espaço interestelar. Um ponto cada vez mais distante, do qual me afasto a uma velocidade sub lumínica constante. O meu destino é absolutamente previsível, a órbita de um novo sol. Mesmo que quisesse alterar o meu destino, não o poderia fazer. A inteligência artificial que controla os sistemas complexos deste aglomerado de módulos soldados ao propulsor sub lumínico tem uma vontade implacável, indelevelmente impressa em circuitos holográficos e sub-rotinas paraconsistente. Sob os raios desta nova estrela, tentarei afastar os véus de uma atmosfera alienígena, e perscrutar as paisagens de um novo mundo. Adivinhar as geometrias dos espaços escondidos sob as nuvens cuja real composição é conhecida apenas pelo espectómetro. Cheirar a atmosfera que a inteligência artificial me informa amávelmente que é tolerável pelo ser humano, desde que protegido por um fato de astronauta. Segurança, sempre! As mortes em serviço são má publicidade para um futuro nas estrelas que se quer brilhante, como se saído das páginas coloridas de algum romance pulp de mil novecentos e trinta. Gostamos de nos imaginar como astronautas vestidos em fatos garridos, tripulantes de naves em estonteantes formas art deco. Para as estrelas, e mais além. Sonhos de aventuras nos novos mundos povoados de raças exóticas e belas mulheres langorosas nos seus longos vestidos, dispostas a entregarem-se aos heróis que vêm das estrelas.
A realidade é feita de módulos concebidos olhando para a eficiência máxima de aproveitamento de espaços úteis e fatos bojudos que nos defendem dos perigos do ambiente estéril, repleto de radiação e micrometeoritos que nos espera do lado de lá do casco dos módulos da nave. Quanto às míriades de planetas povoados por espécies exóticas, bem sabemos como a maior parte deles não passam de rochas rodeadas de atmosferas infernais a orbitar de sóis agrestes e letais.
Mas talvez se encontrem excepções, a orbitar a elíptica de um outro novo sol.
Estava uma manhã fria na rampa de lançamento. À minha volta a base fervilhava de actividade. Nas horas que antecedem um lançamento, o ritmo de trabalho acelera-se à medida que mecânicos e técnicos de engenharia aeroespacial se atarefam nas ultimas verificações aos sistemas do vai-vem. Tudo é verificado, novamente verificado e, só para os técnicos se sentirem seguros, verificado uma terceira vez. Nenhum parafuso é esquecido, nenhuma junta de tubagem escapa às verificações. Debruçados sobre as suas consolas portáteis, os técnicos de software avançado metralham os sistemas de inteligência artificial com todas as situações de perigo previstas nos manuais, e mais algumas situações perigosas inventadas pelo lado desviante das suas mentes de hackers.
Paira no ar um leve odor à hidrazina que enche os monstruosos tanques do foguetão que me colocará em órbita. Ao olhar para cima, vejo perfeitamente recortada contra o céu azul a silhueta do módulo tripulado no topo do foguetão. Estão sólidamente ancorados pelas treliças da torre de lançamento. Como tentáculos, os veículos estão ligados à torre por míriades de cabos de sustentação, cabos de comunicação e cabos de combustível. Presa à terra, a nave anseia por se libertar e descolar, escapando a este fundo de poço gravitacional. A elegante carenagem arodinâmica do módulo tripulado augura terríveis acontecimentos. Só precisarei da aerodinâmica do módulo se tudo correr mal, e for forçado a regressar à atmosfera. Eu não planeio voltar. Pelo menos, não planeio voltar muito cedo.