quinta-feira, 25 de agosto de 2005
Cidade de Vidro
City of Glass de Paul Auster, adaptado por Paul Karasik e David Mazzucchelli, Nova Yorque, Picador, 2004
Salon | Paul Auster
Exterior and Interior Cityscapes in Paul Auster’s Fictions
Paul Auster
Ensaios sobre a obra de Auster
Blog da Utopia | City of Glass
Um solitário escritor de inconsequentes romances policiais recebe uma chamada a meio da noite, a pedir-lhe para investigar um caso policial. Envolvido numa trama de meias palavras e labirintos conceptuais, o escritor acaba por desvanecer-se nas ruas da cidade, deixando um caderninho cheio de notas que nos permite reconstituir a sua queda no esquecimento.
Se olharmos para as profundezas de um texto, descobrimos sempre cadas vez mais níveis de complexidade sempre que mergulhamos mais a fundo nas palavras do texto. As histórias raramente são simples, embora o pareçam. Talvez seja por isto que textos como o corão ou a bíblia têm tanto significado: quanto mais são lidos, a mais interpretações se prestam. Cada leitor lê aquilo que entende ler.
City of Glass é um texto profundamente complexo. Nele, as identidades dos personagens fundem-se e esfumaçam-se, como se de um sonho se tratasse. O protagonista, Daniel Quinn, é um escritor que após a morte da mulher e do filho deixou de escrever textos com siginificado e passou a debitar as aventuras de Max Work, prototípico detective privado dos estereótipos romances policiais. Nunca chegamos a saber como faleceu a mulher e o filho de Quinn; antes ficamos com a certeza de que a morte destes tornou-se o momento em que Quinn esquece a sua humanidade, passando a viver num mundo de sonhos.
A solitária rotina de Quinn é interrompida por um misterioso telefonema. Do lado de lá da linha, uma voz feminina pede a ajuda do detective Paul Auster para um caso de vida ou morte. Quinn vê-se confundido com Auster, e acaba por ceder aos pedidos insistentes de ajuda. Encarnando-se na sua personagem de Max Work, e assumindo a identidade de Auster, Quinn encontra-se com Virgínia Stillman, que lhe pede ajuda para manter sob vigilância o pai de Peter Stillman, seu marido. Stillman havia sido confinado a um quarto pelo seu pai, também Peter Stillman, convencido que ele desaprenderia a linguagem humana e começaria a falar a língua de deus, de acordo com a teologia do século XVI e os textos de Henry Dark, secretário de John Milton e pregador na américa de mil e seiscentos. As acções de Stillman-pai resvalaram num total falhanço, que culminou na desaprendizagem da linguagem por Stillman-filho. Descobertos os maus tratos, Stillman pai é confinado à prisão, e Stillman filho é internado num hospício, onde Virgínia, saída de um casamento falhado, se casa com ele para o retirar do hospício e mostrar-lhe a realidade que durante anos lhe foi escondida.
Quinn começa assim a vigiar Peter Stillman, que após a saída da prisão mantém-se numa rotina de passeios diários por nova yorque, a cidade sempre presente, recolhendo objectos deitados fora. Quinn, num esforço para compreender o porquê de Stillman, o que ele realmente é, começa a registar minuciosamente os percursos de Stillman, e ao traçá-los sobre um mapa apercebe-se que o vaguear de Stillman obedece a uma lógica própria. Os passeios aparentemente sem destino de Stillman formam letras ao serem traçados num mapa.
Quinn acaba por travar conversas com Stillman, onde este lhe revela o seu projecto de invenção de uma nova linguagem. Para Stillman, controlar as palavras equivale a controlar o nosso destino.
Stillman desaparece e Quinn contacta Paul Auster para lhe contar o sucedido e pedir ajuda. Mas Auster não é detective, é escritor, e não percebe o porquê da confusão. Mesmo assim, fica curioso. Perante a família de Auster, Quinn recorda-se da sua, e foge, regressando ao seu labirinto. Tenta contactar Virgínia, mas não consegue. Então instala-se num beco perto da casa de Stillman filho e começa a vigiar ininterruptamente o prédio, até se confundir com as sombras, as paredes e os caixotes de lixo. Entretido com a sua história policial, Quinn transforma-se num vagabundo, mais uma alma esquecida por entre as ruas da cidade.
A história termina com o desaparecimento de Quinn. Paul Auster, ao investigar o apartamento abandonado de Peter Stillman, onde Quinn terá passado os últimos dias de que há conhecimento, descobre o caderninho de anotações de Quinn e tenta reconstituir o seu destino.
Confusos? Esta é uma história de ilusões e confusões. Em City of Glass, os egos confundem-se, as personagens fundem-se em si mesmas. Quinn despe-se da sua personalidade e acaba por cair num mundo irreal de ilusões, que o leva à dissolução. Um pouco como um Dom Quixote dos tempos modernos (e D.Q. são as iniciais de Dom Quixote, esse arcaico caçador de sonhos esfumados). A solidão e o vazio da alma do homem contemporâneo produzem uma eterna perseguição de sonhos ilusórios que se desvanecem, esfumando-se nos precisos momentos em que pensamos agarrá-los.
Parte da Trilogia de Nova Yorque, City of Glass foi "vítima" de uma adaptação para banda desenhada. Adaptar um texto com a complexidade e profundidade de City of Glass não foi tarefa fácil. O desafio partiu de Art Spiegelman, autor de Maus, o comic definitivo sobre o holocausto, e a adaptação recaiu sobre David Mazzucchelli, que em conjunto com Frank Miller revolucionou um personagem esquecido da Marvel, o Demolidor. Mazzucchelli contou com Paul Karasik para o ajudar a superar as dificuldades impostas por um texto como o de City of Glass.
O livro encontra-se perfeitamente espartilhado numa grelha de seis vinhetas por prancha, entrecortadas, quando necessário, por vinhetas maiores. O rigor da disposição das vinhetas ajuda-nos a perceber a inexorabilidade do destino de Quinn, entrecortado com a planta geométrica da cidade de nova yorque, palco privilegiado desta história de dissolução num mundo anónimo de becos e ruas sem destino. As imagens mergulham-nos no mundo do livro, um mundo de ilusões que se esfumaçam.
Subjacente a todo o livro está a cidade que lhe dá título, uma cidade de vidro que espelha o vazio que existe dentro do nosso ser.