terça-feira, 12 de julho de 2005

Santana Castilho | Carta aberta ao engenheiro José Sócrates

Não resisto a colocar online este texto que recebi por e-mail. Trata-se de um artigo de opinião de Santana Castilho, que refuta de uma forma espantosa todos os argumentos que o corrente governo alega em defesa dos cortes no funcionalismo público.


Santana Castilho
Carta aberta ao engenheiro José Sócrates (jornal "O Público")

Esta é a terceira carta que lhe dirijo. As duas primeiras, motivadas por
um convite que formulou mas não honrou, ficaram descortesmente sem resposta. A
forma escolhida para a presente é obviamente retórica e assenta num direito
que o Senhor ainda não eliminou: o de manifestar publicamente indignação
perante a mentira e as opções injustas e erradas da governação.

Por acção e omissão, o Senhor deu uma boa achega à ideia, que
ultimamente ganhou forma na sociedade portuguesa, segundo a qual os
funcionários públicos seriam os responsáveis primeiros pelo descalabro das
contas do Estado e pelos malefícios da nossa economia. Sendo a administração
pública a própria imagem do Estado junto do cidadão comum, é quase
masoquista o seu comportamento.

Desminta, se puder, o que passo a afirmar:

1. Do Statistics in Focus n.º 41/2004, produzido pelo departamento
oficial de estatísticas da União Europeia, retira-se que a despesa portuguesa
com os salários e benefícios sociais dos funcionários públicos é inferior
à mesma despesa média dos restantes países da Zona Euro.

2. Outra publicação da Comissão Europeia, L"Emploi en Europe 2003,
permite comparar a percentagem dos empregados do Estado em relação à
totalidade dos empregados de cada país da Europa dos 12. E que vemos? Que em
média, nessa Europa, 25,6 por cento dos empregados são empregados do Estado,
enquanto em Portugal essa percentagem é de apenas 18 por cento. Ou seja, a
mais baixa dos 12 países, com excepção da Espanha. As ricas Dinamarca e
Suécia têm quase o dobro, respectivamente 32 e 32,6 por cento. Se fosse directa a relação entre o peso da administração pública e o défice, como estaria o défice
destes dois países?

3. Um dos slogans mais usados é o do peso das despesas de saúde. A
insuspeita OCDE diz que na Europa dos 15 o gasto médio por habitante é de
1458 ?. Em Portugal esse gasto é... 758 ?. Todos os restantes países, com
excepção da Grécia, gastam mais que nós. A França 2730 ?, a Áustria 2139,
a Irlanda 1688, a Finlândia 1539, a Dinamarca 1799, etc.

Com o anterior não pretendo dizer que a administração pública é um
poço de virtudes. Não é. Presta serviços que não justificam o dinheiro que
consome.

Particularmente na saúde, na educação e na justiça. É um santuário
de burocracia, de ineficiência e de ineficácia. Mas, infelizmente para o
país, os mesmos paradigmas são transferíveis para o sector privado. Donde a
questão não reside no maniqueísmo em que o Senhor e o seu ministro das
Finanças caíram, lançando um perigoso anátema sobre o funcionalismo
público. A questão reside em corrigir o que está mal, seja público, seja
privado. A questão reside em fazer escolhas acertadas. O Senhor optou pelas
piores. De entre muitas razões que o espaço não permite, deixe-me que lhe aponte duas:

1. Sobre o sistema de reformas dos funcionários públicos têm-se dito
barbaridades. Como é sabido, a taxa social sobre os salários cifra-se em
34,75 por cento (11 por cento pagos pelo trabalhador, 23,75 por cento pagos pelo
patrão). Os funcionários públicos pagam os seus 11 por cento. Mas o seu
patrão Estado não entrega mensalmente à Caixa Geral de Aposentações, como
lhe competia e exige aos demais empregadores, os seus 23,75 por cento. E é
assim que as "transferências" orçamentais assumem perante a opinião pública
não esclarecida o odioso de serem formas de sugar os dinheiros públicos. Por
outro lado, todos os funcionários públicos que entraram ao serviço em
Setembro de 1993 já verão a sua reforma calculada segundo os critérios
aplicados aos restantes portugueses. Estamos a falar de quase metade dos
activos. E o sistema estabilizará nessa base em pouco mais de uma década.

Mas o seu pior erro, Senhor Engenheiro, foi ter escolhido para artífice
das iniquidades que subjazem à sua política o ministro Campos Cunha, que não
teve pruridos políticos, morais ou éticos por acumular aos seus 7000 euros de
salário os 8000 de uma reforma conseguida com seis anos de serviço. E com a
agravante de a obscena decisão legal que a suporta ter origem numa proposta de
um colégio de que o próprio fazia parte.

2. Quando escolheu aumentar os impostos, viu o défice e ignorou a
economia.
Foi ao arrepio do que se passa na Europa. A Finlândia dos seu encantos
baixou-os em quatro pontos percentuais, a Suécia em 3,3 e a Alemanha em 3,2.
Porque não optou por cobrar os 3,2 mil milhões de euros que as empresas
privadas devem à segurança social? Porque não pôs em prática um plano para
fazer andar a execução das dívidas fiscais pendentes nos tribunais
tributários e que somam 20.000 milhões de euros? Porque não actuou do lado
dos benefícios fiscais, que em 2004 significaram 1000 milhões de euros?
Porque não modificou o quadro legal que permite aos bancos, que duplicaram
lucros em época recessiva, pagar apenas 13 por cento de impostos? Porque não
revogou a famigerada Reserva Fiscal de Investimento e a iníqua lei que
permitiu à PT Telecom não pagar impostos pelos prejuízos que teve... no
Brasil, o que, por junto, representará cerca de 6500 milhões de euros de
receita fiscal perdida?

A verdade e a coragem foram atributos que Vossa Excelência invocou para
se diferenciar dos seus opositores. Quando subiu os impostos, que perante
milhões de portugueses garantiu que não subiria, ficámos todos esclarecidos
sobre a sua verdade. Quando elegeu os desempregados, os reformados e os
funcionários públicos como principais instrumentos de combate ao défice,
percebemos de que teor é a sua coragem.

É de referir que Santana Castilho foi meu professor de economia na ESE de Santarém.

Ao colocar aqui o texto, provávelmente estou a atropelar uma série de leis de direitos de autor. Que se dane, a causa é justa e eu nem sequer ganho dinheiro com isto.