domingo, 3 de julho de 2005

Post Script

Horizontes


Caríssimo blog:

Dediquei o dia de hoje a ser dona de casa. Limpei o pó, aspirei, passei a ferro, fiz o jantar (uma belíssima cataplana de frango que já cheira bem aqui no atelier) e até limpei a lareira (transformei-a de uma cripta escura coberta de poeira e fuligem numa... cripta escura coberta de poeira e fuligem mas com um vidro a brilhar com um belíssimo brilho baço). Por momentos ainda pensei em atar um lenço à cabeça, vestir um avental e cantar "àgua fria da ribeira", mas o meu sentido de humor mórbido não está assim tão atrofiado. Dediquei-me antes a bombardear os ouvidos da vizinhança com Xenakis, Satie e Penderecki. Satie, claro, foi para descansar os ouvidos entre o assalto sonoro de Xenakis e o assalto sonoro de Penderecki (e logo a 2ª sinfonia de Penderecki, que é poderosíssima). Em abono da verdade, deixem-me dizer que abri as hostilidades sonoras com a Quinta Sinfonia de Shostakovich, com aquela horrível abertura (apropriadamente chamada "abertura festiva") composta apenas para Estaline gostar - e não mandar Shostakovich direitinho para o gulag em noite de estreia, ou destino pior.

Não me chateia muito armar-me em dona de casa. Claro que poderia ter passado a tarde a preguiçar no sofá, mas até um macho mais empedernido percebe que de vez em quando, a casa deve ficar limpa e apresentável. Também é uma das duas grandes razões que nos levam a emparelhar com mulheres e namoradas (a outra razão, se eu a tiver de explicar, então é porque nunca seriam capazes de a compreender). E, na verdade, não concordo muito com a ideia de que o trabalho da casa é para mulheres. Por uma questão de justiça - se eu, ao chegar a casa, cansado do trabalho, gosto é de relaxar, pegar num livro, jogar um joguinho, porque é que a minha rapariga não pode fazer o mesmo?

Nada mau, como manifesto anti-machista. Deixaria as femininistas orgulhosas, se eu lhes ligasse importância. Eu, e o resto do mundo... sempre que olho para o fétiche dos casamentos (os vestidos, as cerimónias, o copo de àgua, a conta alegremente paga com as contribuições dos convidados) penso: ao fim de trinta anos de femininismo, de luta pela igualdade, de libertação dos grilhões da vida doméstica, porque é que as mulheres ainda se dedicam aos casamentos? É daquelas coisas, daquelas coisas inexplicáveis da mente da mulher que só nos dá vontade de contar anedotas de loiras e extrapolar, extrapolar para todas as outras mulheres.

E por falar no desperdício de boas intenções, não queria deixar de registar aqui a minha opinião contrária ao sucesso do live 8. De boas intenções está o inferno cheio, e se os músicos que tocaram no live 8 quisessem realmente acabar com a pobreza em áfrica (e não revitalizar carreiras caquéticas) instigavam os fãs e ouvintes, ao melhor estilo punk 77, a agir sobre aqueles que mantém àfrica pobre - o banco mundial e as corporações transnacionais. Na verdade, áfrica não é um continente pobre - é um continente mal gerido, brutalmente explorado por empresas que se socorrem da corrupção das élites locais para sacarem lucros astronómicos da exploração de recursos naturais; empobrecido pelas políticas de mercado livre do banco mundial, que para emprestar dinheiro com juros altíssimos, obriga os países a abrirem os mercados à concorrencia e à prvatização de serviços públicos. Sem falar nas guerras estimuladas por mercadores de armas sedentos de lucros e na rapacidade dos governantes africanos, famosos pelos seus discursos de pobreza abjecta em fatos armani e automóveis de luxo. E a solução para isto, caros artistas do live 8, é atirar-lhes mais dinheiro?