terça-feira, 5 de julho de 2005

Matrículas

Caríssimo Blog:

Hoje foi dia de matrículas. Dia em que legiões de pais e outros encarregados de educação convergiram, ajaezados de papeis, cartões e documentos, sobre pacientes directores e secretários de turma, preparados para porem cruzinhas onde é de pôr cruzinhas e escreverem onde é de escrever.

Antes de começar a zurzir, a torto e a direito, deixem-me desde já fazer justiça, e afirmar, a pés juntos, que a maioria dos pais não são assim. Quando discutimos o que vai de mal com o ensino, com os pais e alunos em geral, temos tendência a empolar e valorizar os casos mais gritantes, que se olharmos com atenção não caracterizam a generalidade do sistema educativo. Apenas nos marcam, pelos seus contornos ridículos, escabrosos ou violentos, marcam-nos de uma maneira que os alunos normais - a grande maioria, pela sua suave banalidade, não marca. De maneira que isto não retrata a maioria. Leram bem? Isto não é o retrato da maioria. Leram mesmo bem? Espero que sim, pois não volto a repetir.

Por onde poderei começar? Talvez pelos atinados, que pecam por excesso de zelo, como aquela mãe que ao ver-me a mexer em documentos, pediu logo à filha que fosse a correr a casa buscar os documentos originais, apesar de ter mesmo ali à mão cópias dos mesmos documentos. Vinte minutos depois, regressa a miúda, esbaforida, vermelha da corrida e do calor, mal conseguindo articular palavras, com os documentos na mão... e ouve a mãe a dizer-lhe que a viagem foi em vão. Juro que detectei uns laivos de olhar assassino no rosto da aluna. O professor banalizado pela normalidade das maiorias que cumprem o que é necessário sorri, interiormente, comovido com os excessos de zelo e contente pelo interlúdio cómico numa tarefa irritantemente entediante.

Por outro lado, temos sempre os heróis. Aqueles pais que, perante os rotundos chumbos dos filhos (perdão, não se diz chumbo, diz-se não-transição), afirmam sempre que para o ano é que será melhor; para o ano metem a mão nos filhos, e controlam-nos como deve de ser. Para o ano vai estar tudo em ordem, a criança vai-se portar como deve de ser, vai estudar e trabalhar. Agora é que vai ser. Mas vai mesmo, não tenham dúvidas, senhores professores. Pois é, amigo, espero bem que sim, mas olhe, por agora fazia-me mesmo jeito era o bilhete de identidade e o boletim de vacinas do seu filho. Resposta típica, pronta, com o ar mais vazio deste mundo, com aquela cara supreendida de quem não estava mesmo à espera: "ah, isso era preciso? Não tenho nada disso". O professor calejado pensa com os seus botões que a vida da criança vai ser mesmo muito difícil, recheada de chumbos e insucesso escolar generalizado.

Depois temos os atrasados. Aqueles que durante um ano inteiro não passam pela escola para se inteirarem das situações dos seus educandos - ou porque não podem, ou porque não querem, e aproveitam este momento final para esclarecerem tudo e pôr tudo em pratos limpos. "Mas ó professor, eu cá não concordo com isto, e aquilo, e aqueloutro, e acho que há coisas que são mal feitas, e não devia de ser assim", durante minutos que parecem horas. Quando se lhes pergunta quando é que isso aconteceu, lá nos dizem que foi nos confundios perdidos do primeiro período. Quando? Há nove meses? E só agora é que se queixa, quando a razão da queixa já se evaporou e os intervenientes já desapareceram? De muita paciência precisa um professor...

Também temos os graxistas. Pronto, bajuladores, caso objectem com o uso do termo graxista (e, também, porque não quero ofender os engraxadores, que exercem essa profissão digna lá pelos lados da estação do rossio). Estes são aqueles que se desfazem em elogios aos professores. Tanto se desfazem, tanto elogio fazem, que o pobre professor desconfia. Geralmente, bastam umas palavrinhas, e quando o elogio é exagerado, algo se passa. Na mente do professor paranóico e desconfiado, dá-se uma inversão das palavras ouvidas, e ele pensa que lá fora, devem dizer tudo isto... mas ao contrário. Perante a avalanche de elogios, o professor, coitado, lá começa a pensar que é mesmo odiado por aqueles que o elogiam. É nestes momentos que as capacidades telepáticas faziam mesmo jeito.

E não nos esqueçamos dos litigantes. Aqueles que reclamam por tudo e por nada, e que combatem verdadeiras guerras termonucleares para que lhes seja dada razão numa ninharia ou outra. Aqui o professor defensivo acaba por pensar que não lhe pagam o suficiente para aturar isto e banalmente dá razão ao litigante, que imeditamente sorri com aquele sorriso que o gato faz depois de comer o canário e imediatemente antes do canário lhe começar a debicar o estômago. Uma interessante variante dos litigantes são os litigantes perdidos, aqueles que reclamam de coisas que nem eles sabem o que são. Estes suscitam ao professor inquisitivo uns olhares estupefactos, enquanto se pergunta onde, exactamente, é que estão guardados os coletes de forças.

Para terminar, temos os completamente perdidos. Nunca sabem nada, não sabem de papeis, documentos, por vezes nem sabem se o filho passou ou chumbou. Ficam ali à nossa frente, especados com um ar alheado, a responder que não sabem sempre que lhes perguntamos alguma coisa. O professor psicológicamente actualizado associa logo estas atitudes a traumas advindos de recordações de tempos de escola, quando os seus velhos professores lhes perguntavam se dois era o resultado da soma de um mais um e lhes respondiam que não sabiam, com o mesmo ar desamparado, perdido e alheado com que hoje respondem quando se lhes pergunta pelas vacinas do filho, ou se preencheu os documentos da matrícula.
Mas fica no ar a questão. Trauma de infância, ou deficiência neuronal a nível cerebral?

E assim, caríssimo blog, termina aqui este pequeno ensaio sobre a tipologia do encarregado de educação português. Algo ao estilo psicopatologia educacionalis, lembrando sempre que os casos que saltam à vista não são generalizados, lembrando que a maioria dos encarregados de educação são razoávelmente preocupados e organizados. Infelizmente, são banais, logo indignos de conversa de sala de professores ou de exemplo para as lamúrias sobre o sistema educativo. E pronto, lá estou eu a ter a atitude clássica de professor: bem disse que não repetia, para ver se prestavam atenção, mas acabei por repetir.