sábado, 14 de maio de 2005

O Quetzal Sonhador VI

6.

Dia a dia notei que o número de papagaios caidos aumentava. Lentamente, começei a aperceber-me que todos aqueles papagaios caidos tinham algum significado. Pensei que seria talvez uma forma de linguagem, a maneira que Foster tinha de comunicar comigo sem violar a sua decisão de me ignorar. Provavelmente Foster arranjara aquela estranha forma de comunicação como meio de me atrair a ele, repetindo as circunstâncias em que nos conhecemos. Nesse caso, eu tornarme-ia num novo Newman, e Foster poderia esquecer todo o ódio que me tinha.

Eu estava nesse momento a tentar compreender um problema de geometria temporal. Pensava que deveria haver uma conexão lógica entre as minhas fugas temporais e as fotos de partes de corpos de mulher com ângulos, obliquas e retas sobrepostas. E a chave residia talvez no merzbild de Schwitters, com a sua regularidade caotica. Muitas vezes acordei de uma fuga a contemplar intersecções de planos desenhados sobre um seio. Um misto de abstracção e voyeurismo resolviam-se numa satisfação perversamente sexual.
Mas muitas vezes dava por mim a vaguear pelas ruas desertas da cidade abandonada. Certas Memórias difusas das minhas fugas eram compostas por multiplas imagens dos prédios semi-arruinados cobertos de vegetação, maquinaria ferrugenta de onde surgiam flores, pirâmides de gravatas, relógios, discos, frascos, chapéus de sol e penas de quetzal. Os quetzais cercavam-me, poisados nas janelas semi-arruinadas, observando-me num ramo de àrvore, voando acima de mim, dentro de mim. Eu por vezes sentia-me um quetzal, pronto a levantar voo com um simples bater de braços.
Foi para dizer isso a Foster, como desculpa para a minha manipulação dos quetzais, que fiz o que já tinha feito e segui pacientemente o fio de mais um papagaio caido.