É assim a natureza humana. As experiências que temos no nosso trabalho levam-nos, muitas vezes, a duvidar da sanidade da existência de certas pessoas sobre a terra. Quando lidamos diáriamente com os resultados de dez e onze anos da estupidez e irresponsabilidade de pessoas adultas, perdemos um pouco a fé na humanidade.
Mas esta história não é sobre o habitual. Não se trata aqui de abuso de crianças, desprezo, maus tratos ou desleixo. Isso é que normalmente se fala, e compreensívelmente - o que é que dói mais, um corte no dedo ou um braço partido?
Ontem, na minha humilde hora de atendimento aos pais dos alunos da minha direcção de turma (quarenta e cinco minutos, são estas as horas da educação portuguesa) apareceu-me finalmente a avó de um dos meus menos brilhantes alunos. Após inúmeras convocatórias, cartas registadas e recados verbais, a senhora lá conseguiu aparecer (a três semanas do final do ano lectivo).
O aluno em causa até é bom rapaz, mas perde-se demasiado quando envolvido com um colega que, esse, é um verdadeiro case-study de desastre humano (não lhe chamaria caso perdido, mas isto é o meu eterno optimismo a falar mais alto). Como boa parte dos alunos que frequentam o nosso sistema educativo, não tem uma vida em tons de cor de rosa-telenovela, embora também não a tenha em tons de negro. Simplesmente, o trabalho dos pais não lhes permite muito tempo para acompanharem um filho que precisa de acompanhamento.
O percurso escolar do aluno é típico: mete-se em alguns sarilhos, só se lembra de estudar depois de receber os testes negativos, e a sala de aula, como nós bem sabemos, serve para tudo menos para estar atento e aprender.
(Mas quanto a esta última, quem estiver inocente que atire a primeira pedra... nunca me distingui por ser um aluno particularmente atento - aquelas aulas de matemática, onde tanto desenhei... e sempre que frequento uma acção de formação destinada a professores, fico abismado com o nível de indisciplina demonstrado pelos colegas da classe docente... enfim, mas estas são outras conversas...)
Um ano lectivo quase passado, com muitas negativas, muitas irritações e muitas tentativas frustradas de levar a criança ao redil, aparece-me a avó, numa tentativa de acertar agulhas para tentar que o aluno melhore. Um pouco tarde, talvez, mas a esperança é a última a morrer (mas mesmo assim morre antes do desespero). Não vou revelar o teor da conversa - rego-me por uma certa confidencialidade. Mas não variou muito do esperado. As mesmas ideias de sempre, as mesmas lamentações de sempre. Não é assim tão complicado educar uma criança (poucos ingredientes: amor, responsabilidade, coerência, firmeza, paciência), mas mesmo assim há tanta gente que consegue esfrangalhar-se nesta tarefa. É tão óbvio...
A piéce de resistance deu-se lá para o final da conversa, quando, após ter pintado um quadro bastante tenebroso do presente e do futuro do aluno, a senhora começa a apelar ao bom coração dos professores para que o aluno passasse. E, mais ainda, sendo eu "uma pessoa visívelmente bondosa", poderia apelar, para que nestas três semanas algum milagre aconteça.
Fiquei estupefacto (a parte dos elogios soube-me bem, claro). Não partilhando das paranoias dos meus colegas, que veêm nos encarregados de educação ameaças, não interpretei negativamente as palavras da senhora - uma avó, que, no fundo, só está a fazer o que lhe parece ser o melhor para o neto. O que me surpreendeu foi a fraca noção da realidade demonstrada. A filosofia do favor. Um por favor que consiga eliminar tudo o que foi feito de errado... portas-te mal, não estudas, não te esforças, não fazes nada por ti? Não te preocupes, basta pedir por favor, e logo o nosso coração bondoso te dará a recompensa para a qual nem te preocupaste em te esforçares. Ainda pensei, para com os meus botões, se quando o rapaz, no futuro, for despedido de algum emprego a avó lá estará para apelar à bondade do patrão...
Não quero com isto dizer que defendo uma rigidez absoluta. Mas defendo sim que devemos colher os frutos do nosso trabalho - e sofrer as consequências das nossas acções. Os perdões e indulgências não costumam resolver nada. Prolongam o inevitável.