domingo, 13 de fevereiro de 2005

Edifício


Concepção Posted by Hello

O edifício é demoníacamente alto para os olhos humanos. Um produto de tentativas de urbanização barata para os pobres deste país, o edifício obedece à ideia da maximização do número de apartamentos disponíveis. No entanto, o arquitecto que projectou este edifício provavelmente decidiu criar uma obra estruturalmente inquietante. O edifício é composto por três corpos... o primeiro, um paralelepípedo, eleva-se até ao ponto em que suporta um imenso cubo que parece desafiar a gravidade, uma vez que apenas um dos seus vértices realmente se apoia no paralelepípedo que lhe serve de base... o terceiro corpo do edifício é, de novo, um pequeno paralelepípedo que nada faz para equilibrar visualmente a estrutura.

Visto do exterior, o edifício dá a inquietante sensação de que está prestes a desabar sobre as nossas cabeças... impressão que é reforçada pela visão de vários pátios imensos que se projectam das paredes do edifício.

A única concessão à graciosidade estética presente neste edifício (que é realmente uma homenagem à pura geometria estrutural, e que reflecte alguma utopia interior do arquitecto envolvendo cidades geométricamente perfeitas ao ponto de se tornarem inquietantes) reside nos murais de azulejo que decoram as paredes exteriores, disfarçando a sucessão de pequenas janelas e varandas num redemoínho de cor.

Talvez por causa das terríveis impressões visuais que este edifício causa naqueles que o observam, os seus habitantes são considerados os mais miseráveis de entre os habitantes dos bairros sociais. Neste edifício, a pobreza e o crime atingem níveis inimagináveis, sendo óbvio que muitos desses crimes passem despercebidos dentro do labirinto insondável que constitui esta homenagem à lógica estrutural da geometria.

Muito pouco do que realmente se passa dentro do edifício chega aos ouvidos da sociedade.
Em vez de uma obra barata para albergar os deserdados da nossa sociedade, o edifício tornou-se realmente num labirinto que troça da alma humana, conduzindo à indigência e ao desespero todos aqueles que foram infelizes ao ponto de habitarem em tal enormidade.
É no interior desse labirinto que penetram dois algo temerários jornalistas, armados com uma câmara de video. Qual é o objectivo da aventura destes dois nos recessos deste labirinto aqruitectónico, não sei. Não é essa a minha função. Eu apenas observo, surpreendido, enquanto os jornalistas filmam os corredores, um mostruário de toda a miséria presente neste labirinto. Observo as suas expressões transformarem-se em rostos de profundo nojo perante a parada de doentes imundos que se abrigam nos corredores.

Observo sem expressão, sem sentimento, enquanto eles penetram, de câmera em punho, no espaço apertado de um dos apartamentos. Imperturbáveis, provavelmente já afectados pelo sentimento de indiferência à miséria que este labirinto tem o estranho condão de provocar. Observo-os enquanto filmam toda a podridão e sujidade do apartamento, os restos de peixes fritos semi-apodrecidos naquilo que passa por cozinha do apartamento. Eis, finalmente, alguma expressão de surpresa, ao filmarem as estranhas formas que as plantas de arroz tomam por terem sido fertilizadas com sémen humano. Existe algo no monte de terra que nutre o arroz que se assemelha demasiado a um feto humano ainda nos primeiros estágios da sua formação para não deixar os jornalistas indiferentes.
A câmera filma imparcialmente o feto abortado, demorando-se com um carinho de mãe sobre a sua cabeça acastanhada, sobre os pequenos braços que protudem do tronco já algo roído pelos ratos que infestam todo este edifício. Nos orifícios dos olhos existe apenas um vazio da cor do sangue seco.
Talvez tenha chegado o momento de eu actuar. Quase incoscientemente, apresento aos jornalistas outro dos horrores deste labrinto de podridão. As moscas, bem nutridas na carne putrefacta das feridas dos habitantes deste prédio, precipitam-se sobre o par de jornalistas, com toda a sua carga de germes e vírus adquirida na poridão deste labirinto.

Os jornalistas gritam e tentam fugir, apesar de saberem que a partir do momento em que as moscas os começaram a morder ficaram contaminados por toda a podridão deste edifício. A fuga é impossível. Os jornalistas perdem-se por entre o labirinto de corredores e portas travessas da geometria labiríntica desta obra de arquitectura... estão, para sempre, encurralados, e o seu destino é tornarem-se corpos deambulantes, vagueando cobertos de chagas pelos corredores, em busca de uma saída que não existe. Gradualmente, tornar-se-ão seres catónicos no meio da imunda miséria...
Insensível ao pequeno drama que acabou de se desenrolar, deixo os olhos passear pelas formas negras da câmera, enquanto me preparo para lutar com os meus demónios interiores.
Como um doente de elefantíase, de faces disformes, com tentáculos pustulentos que me nevolvem num abraço mortal, a personificação física dos meus demónios interiores arrasta-me para o chão, com tantas vezes já o fez. Eu não consigo vencê-lo, tal como ele não me consegue vencer... é uma situação paradoxal, sem solução possível.

Degladiando-me eternamente com demónios, pouco diferentes sou dos seres catatónicos que percorrem os corredores imundos deste labirinto, no qual não existem carcereiros, existem apenas prisioneiros.