terça-feira, 8 de setembro de 2020

Analogia

George Dyson (2020).  Analogia: The Emergence of Technology Beyond Programmable Control. Nova Iorque: Farrar, Straus and Giroux.

Andei a ruminar nas ideias deste livro após ter terminado a leitura, e confesso que não percebi onde é que o autor quer chegar. Não me entendam mal, a temática e as histórias, especialmente as da história, que Dyson entretece ao longo das páginas são fascinantes, mas falta a pedra-chave, que fecha o arco e torna o livro conclusivo. Talvez Dyson esteja a lançar um desafio ao leitor, para refletir sobre as analogias da interseção entre tecnologia e história, e tirar as suas conclusões.   Ou então é mesmo uma colagem de elementos históricos díspares ao qual falta o fio condutor.

Os livros de Dyson costumam ter o problema de serem demasiado biográficos no que toca à sua família, e este não só não é exceção, como é exemplo perfeito disso. Sim, é verdade, Freeman Dyson foi um nome importante da ciência do século XX, é giro saber que George brincava ao pé do escritório de Einstein, era levado para almoçar pela companheira de Leo Szilard, ou que a sua mãe era uma pioneira na matemática. Também é giro descobrir que este rapaz nascido em berço de ouro académico largou a universidade para viver uma vida de aventura no norte gelado da América, entre as águas turbulentas do Alasca e Colúmbia Britânica, com um lado hoje dito de maker, construtor de canoas e casas nas árvores. Não precisávamos era de tantos detalhes sobre isso, especialmente quando estamos a tentar perceber onde quer chegar com o livro. 

O livro começa de forma improvável, com Leibniz e Pedro o Grande a partilhar líquidos numa estância termal, onde o czar é desafio pelo matemático com três grandes ideias: fundar uma academia científica, explorar os novos mundos que estavam para lá da Sibéria, e investir na construção de uma máquina lógica, com berlindes a circular por entre caminhos para obter respostas a questões colocadas de cálculo. Duas em três não é um mau recorde. Uma academia russa foi fundada, e foram lançadas expedições para lá da Sibéria que colocaram os russos  no Alasca. No entanto, foi o sonho não realizado de Leibniz que viria a determinar a nossa sociedade contemporânea.

Daí, o livro segue por uma viagem história e etnográfica da América do Norte, com alguns choques tecnológicos. Dyson olha para a exploração Russa do norte, assente na exploração do comércio de peles e na gestão das tribos autóctones; leva-nos mais a sul, ao extermínio dos Índios pela política armada do governo americano. No primeiro caso há confluências tecnológicas interessantes - a capacidade russa de pegar nos kayaks e recriá-los numa nova embarcação leve e eficiente. No outro, o oposto, um confronto entre duas sociedades, com os vencedores a usar a sua tecnologia, da arma repetitiva ao heliógrafo e telégrafo, para o extermínio dos vencidos.

Pelo caminho, temos reflexões sobre a relação elementar entre computação e física atómica. Dyson não cessa de nos recordar a importância dos estudos sobre bombas atómicas para avançar o poder computacional disponível. E é aqui que o livro falha, Dyson entretém-se tanto a falar do pai que deixa de parte a análise profunda da evolução da computação. 

Aflora ideias interessantes. A comparação com o nosso mundo analógico mas computacional, com o mundo computacional lógico que construímos tem por detrás a ideia que a computação profunda é analógica e não digital. Que a infinita variação do analógico é mais rica e inteligência que os estados binários sim/não da nossa corrente tecnologia digital. É aqui que Dyson mostra a sua ideia basilar. Ferramenta imperfeita que é (e qualquer observador das tecnologias digitais, estabelecidas e emergentes, sabe que para além do hype são ferramentas muito embotadas), a tecnologia digital está a levar ao surgimento de comportamentos emergentes, que transformam as sociedades e as pessoas. Não mergulha a fundo nisso, mas percebe-se onde quer chegar, é um pouco aquela ideia mcluhaniana de "modelamos as nossas ferramentas e depois elas modelam-nos a nós" à escala global. As ferramentas digitais que Dyson considera elementares pela forma como reduzem a complexidade ao binário, ao serem usadas, geram um acumular de comportamentos complexos capazes de transformar as nossas sociedades. Para Dyson, os nossos computadores não são inteligentes (apesar do marketing que para aí vai), mas os comportamentos padronizados que potenciam poderão ser uma nova forma de inteligência.  Veja-se o nosso corrente deslumbre com a Inteligência Artificial, uma tecnologia que não é realmente inteligente (é poder computacional aplicado à estatística no seu lado mais elementar) mas gera ferramentas que de facto alteram a nossa perceção da realidade.

Agora, e cruzar isto com as tropelias russas no Alasca, ou as balas da US Cavalry a exterminar Apaches que se rendiam? Talvez Dyson nos queira dizer que apesar na nossa crença inabalável numa certa ideia de superioridade civilizacional, com a nossa tecnologia, valores democráticos e humanistas a formar uma espécie de pináculo da humanidade que esperemo que continue em frente, estamos na verdade tão vulneráveis quando os Aleutas ou os Apaches. Com a diferença que as forças que nos poderão destruir não são externas, são criadas por nós, uma consequência emergente da intensificação de tecnologias simples que geram comportamentos complexos. 

Será isto? Bem, diga-se que há coisas piores do que terminar uma leitura com sentimento de incompreensão. Não na vertente não percebi nada disto. Na bem mais enriquecedora vertente de ficar com ideias na mente, que levam a vários caminhos reflexivos. As analogias (o duplo sentido do título do livro é bem visível) têm essa capacidade.