segunda-feira, 22 de agosto de 2005

Metal retorcido pela geometria do embate

Escreveu J. G. Ballard no inimitável Crash que depois de anos de bombardeamento das campanhas de prevenção rodoviária com imagens aterrorizadoras de acidentes de automóvel, foi um alívio quando finalmente se viu envolvido num acidente. Não posso dizer o mesmo. O único alívio que sinto é aquele alívio egoísta correspondente à sensação de ainda bem que isto não foi comigo. Mas foi mesmo à frente dos meus olhos.

Ontem, à tardinha, o meu fiel 205 estava parado numa fila de trânsito no Sobreiro. Um mini-engarrafamento motivado pelos turistas que querem passear o seu olhar esgazeado pelas miniaturas do mundo saloio do Zé Franco. Estava eu parado pouco antes de um cruzamento, com outro carro a querer sair dali. Olhei em frente - a fila de placas de matrícula e luzes de paragem à minha frente tinha avançado alguns centímetros. Deixei-me ficar parado, para dar oportunidade ao condutor do veículo que estava no cruzamento de seguir à sua vida. O trânsito em sentido contrário encontrava-se devidamente imobilizado devido a um semáforo vermelho. E o carro lá sai do cruzamento, cuidadosamente. Um carrinho velho, num cinzento desbotado que revela ter sido preto exposto ao sol durante a longa vida do automóvel. É então que o impensável acontece.

Ouço um baque, aquele ruído de metal contra metal tão típico dos choques rodoviários. Uma vespa que seguia em contra-mão a ultrapassar a fila de trânsito tinha-se estampado contra a carenagem do motor do automóvel. Os cavaleiros da vespa foram projectados, efectuando arcos parabólicos perfeitos sobre o capot do automóvel que terminaram no asfalto da estrada. Tudo isso aconteceu precisamente ao meu lado. A minha visão periférica captou o embate. As piruetas dos ocupantes, a motocicleta a ressaltar do embate contra o carro, oscilando antes de se imobilizar no chão, tudo isso vi com aquela clareza que o nosso cérebro revela naquelas fracções de segundo cruciais.

Os meus joelhos tremiam tanto que não conseguia segurar o pedal da embraiagem quando saí dali.

Felizmente, não houve feridos. Foi apenas chapa, como se costuma dizer. Sérias amolgadelas na superfície geometrizada do capot do carro, parte frontal da motoreta desfeita pelo impacto. O metal saiu-se mal, a carne nem por isso. Mas não quero com isto dizer que tenha corrido tudo bem.

Foi um acidente estúpido, provocado por um campónio convencido de que é um às do volante da vespa, que perante uma fila de trânsito em vez de respeitar o código da estrada decide ultrapassar, argumentando após o acidente que podia fazer isso, sim senhor, desde que se mantivesse do lado de cá do traço descontínuo. O tipo fez questão de assinalar aos agentes da GNR que se deslocaram ao local, perante uma lambreta caida no meio da estrada, em pleno sentido contrário, perante uma marca de embate que o colocava precisamente no meio do sentido contrário, e se calhar com marcas de travagem no pavimento, que não, senhor guarda, eu ia precisamente em cima do traço, olhe lá se não ia. Tive de me conter para não me rir. Imaginem um gorducho atarracado, de higiene pessoal supeita ou mesmo inexistente, a gesticular veementemente, apontando para o chão e a afirmar a pés juntos o que visívelmente era de veracidade dúbia. Parece saído de algum sketch de comédia popularucha. Infelizmente, os ocupantes do carro acidentado eram brasileiros, dessa espécie de legalidade duvidosa que tanto pulula aqui por estes lados. O condutor do veículo, que não tinha qualquer um dos documentos necessários para que o veículo circulasse (os documentos do carro, seguro, inspecção, selo do imposto de circulação, enfim, tudo aquilo que suga o dinheiro aos condutores responsáveis) fez-se invisível. Desapareceu. A trabalheira caiu sobre os ombros do amigo que ia com ele no carro, que ainda tentou seguir o exemplo do companheiro, mas o dono da mota não deixou, o que ia provocando cómicas cenas de pugilato. Não é boa ideia fazer disto na terra de alguém, e os conhecidos do motociclista já se estavam a aproximar com ar ameaçador. A cena foi evitada por um turista que se disse comissário de polícia e calou o brasileiro com frase típicas como "se me tocas, já não te levantas" ou "se não acreditas que sou comissário vais dentro".

Tudo isto sob um coro de buzinas e uma paisagem de automóveis a tentarem contornar o acidente, repletos de motoristas de olhar furioso e assassino.

Este miserável fait-divers terminou com a chegada dos agentes da GNR que tomaram as diligências obrigatórias e rotineiras. Digo rotineiras porque se para mim ver o acidente foi algo chocante, infelizmente a realidade das estradas e a reduzida capacidade neuronal de parte dos condutores que se passeiam pelas estradas portuguesas define o acidente automóvel não como uma aberração mas sim como uma rotina sangrenta.

Lição a retirar: calma e tranquilidade na estrada. Músiquinha agradável, pé leve no acelarador, atenção redobrada. De que serve empreender uma viagem se não se chega ao destino?