terça-feira, 8 de abril de 2014

Visões de Utopia: Percepções sobre Ficção Científica


Apontamentos para o Ateliê Utópico Visões de UtopiaUtopias 2014. Nota inicial: este texto reúne apontamentos sobre a evolução do género, reflexões sobre a vertente conceptual, listagem de sub-géneros e hiperligações para recursos web sobre ficção científica em Portugal. Foi criado no âmbito do Utopias 2014 para contextualizar o atelier Visões de Utopia. Não pretende ser um estudo aprofundado sobre o género. Funciona como introdução ao seu espaço de ideias numa perspectiva de reflexão sobre desafios contemporâneos extrapolandos para futuros imaginários. Agradeço ao João Campos pela revisão à última hora e preciosas sugestões. Não sendo eu académico desta área, nem este texto tem essas pretensões, sublinho que o que aqui é dito é passível de discussão.

1. Ficção Científica: breve apontamento histórico


A relação entre tecnologia e progresso humano (Brynjolfsson, McAffe, 2014)

Comecemos por um gráfico publicado nos primeiros capítulos do livro The Second Machine Age de Erik Brynjolfsson e Andrew McAfee, que está longe da especulação ficcional. É uma análise que oscila entre o arrepiante e optimismo excessivo sobre o impacto da tecnologia de vanguarda na nossa sociedade. Imaginemos a automação algorítmica e robótica a destruir empregos, ou a hipervigilância de um mundo coberto por sensores baratos capazes de monitorizar e recolher quantidades gargantuescas de dados sobre tudo o que fazemos, e temos uma ideia sobre onde o livro toca.

O que torna o gráfico interessante do ponto de vista da FC é a forma como, de acordo com os autores, a partir da revolução industrial a curva do índice desenvolvimento humano dispara, demonstrando impacto da tecnologia no progresso humano (Brynjolfsson, McAffe, 2014). Nesta época começou a afirmar-se a ideia que progresso científico geraria progresso tecnológico e social, substrato do qual podem nascer visões que especulam sobre futuro possíveis.

É curioso observar que mais ou menos no momento em o gráfico dispara, nos primórdios da era industrial, foi publicado aquele que alguns consideram como o primeiro grande romance de ficção científica: Frankenstein, de Mary Shelley (Aldiss, 1988). Parece-nos uma ideia estranha, uma vez que estamos habituados a concebê-lo como uma obra de horror, mas o romance está na confluência do romance gótico com visões proto-científicas. A história não se explica através do ocultismo mágico e baseia-se em possibilidades científicas, na responsabilidade, arrogância e consequências imprevisíveis do progresso num romance-périplo que leva o leitor numa viagem dupla por entre cenários fantasistas e ideias progressistas.
Entre textos mais antigos que exploram diversas temáticas que irão coalescer na Ficção Científica podemos encontrar os périplos inter-planetários satíricos de Luciano de Samosata, Kepler e Voltaire, ou os proto-universos paralelos de Margaret Cavendish. A venerável tradição das utopias e distopias dispõe-se num arco literário que inclui Platão, More, Swift, Defoe, Butler e Zamiatin.

O percurso da ficção científica inicia-se a partir das raízes das narrativas utópicas e das viagens extraordinárias (Aldiss, 1988), tendo evoluído a partir de histórias com preocupações morais e sociais para se focalizar na importância da ciência enquanto elemento-chave em voos imaginários construídos a partir de especulações de bases científicas, ou visões de menor rigor mas inspiradas no progressismo positivista da tecnologia. Estas são os elementos ficcionais do romance de aventuras de Verne e nos romances científicos de H.G Wells. Estas obras ainda não são o que em definitivo se veio a considerar ficção científica, mas apontaram caminhos e traçaram linhas narrativas que actualmente ainda são exploradas.

Do cerne da obra destes autores evoluíram histórias de guerra futura, narrativas apocalípticas de uma humanidade extinta ou em vias de extinção, Edisonades, histórias sobre as aventuras de engenhosos inventores, histórias de aventura em terras exóticas. No processo de desenvolvimento da Ficção Científica enquanto forma de literatura popular ciência e tecnologia são os elementos que as distinguem de outras formas, atraindo os leitores e seduzindo-os com sonhos tecno-utópicos. Este progressivo incorporar de elementos científicos culmina nas narrativas pulp ao estilo de Hugo Gernsback, editor da Amazing Stories, talvez o primeiro a definir o conceito de ficção científica, e firme defensor de histórias onde o imaginário do artefacto tecnológico é o cerne da narrativa (Stableford, 2003).


Sonhos de aventuras nos territórios exóticos do imaginário: Flash Gordon por Al Williamson

Podemos encontrar o berço do que hoje consideramos FC na tradição das revistas pulp dos anos 20 e 30 do século XX. As obras seminais dos grandes autores da era clássica do género tiveram a sua génese como contos nestas publicações, algumas das quais ambicionavam abertamente sair do recanto de publicações de qualidade baixa que viviam da reimpressão de contos clássicos e obras simplistas de autores hoje esquecidos. Começam nesta época a traçar-se algumas das clivagens profundas ainda hoje observáveis no género: a concepção de uma Ficção Científica didáctica e centrada na tecnologia do editor Hugo Gernsback, o foco nas preocupações literárias expressas pelo trabalho de edição de John W. Campbell, e a clivagem entre visões críticas da FC como literatura de entretenimento e como forma de expressão literária por direito próprio, centrada na interpretação da influência da ciência e tecnologia sobre a humanidade nas suas diferentes dimensões.

Associamos ao pulp histórias formulaicas de aventuras futuristas, onde a plausibilidade não é importante e a prosa é muitas vezes sofrível. Mas formou mentalidades, criou públicos, e permitiu aos escritores mais ambicioso desenvolver FC com um misto de preocupação literária, pensada a partir de ideias e ambientes que não são necessariamente dependentes de um artifício tecnológico, e uma visão de análise especulativa dos impactos científicos e técnicos no ser humano.

No ponto mais alto desta tradição de publicação em revistas observamos a fortíssima influência da revista inglesa New Worlds dirigida por Michael Moorcock, que fez a ponte entre uma FC clássica, centrada num optimismo tecnológico e em visões de aventura para uma FC mais madura, de crescentes ambições literárias e que se inspira e busca influências no surrealismo, dadaísmo, modernismo e realismo mágico. Se hoje as fronteiras narrativas do que é FC são difusas e abrangem muitas formas que estão próximas da literatura convencional, tal deve-se ao trabalho de Moorcock a estimular a publicação das obras fortemente experimentalistas de J. G. Ballard e outros escritores da New Wave que redefiniu o género (Aldiss, 1988).

Esta revista marca o ocaso da FC pulp e a génese da FC enquanto género literário ambicioso, capaz de ao mesmo tempo se dedicar à exploração dos seus temas próprios e apostar na complexidade narrativa e estilística. O livro-romance torna-se a forma preponderante no género, embora a tradição do conto persiste na publicação de antologias, que mantém viva a memória do género enquanto dão voz a escritores novos e consagrados.

A afirmação da FC publicada em livro inicia-se nos anos 50. O advento do formato paperback permitiu aos editores lançar no mercado livros a baixo custo em competição directa com as revistas coligindo contos previamente publicados em pulps agora empacotados como romances, caso de livros como The Martian Chronicles de Bradbury, I Robot ou Foundation de Asimov, que se tornaram referências do género.

Os caminhos temáticos do género começam a caracterizar-se pela complexidade com que abordam realismo científico, especulação informada, visões utópicas, distópicas ou transformativas. Com temas e vozes literárias definidas o género atinge a maturidade nesta época (Aldiss, 1988) em que o optimismo começa a esfumar-se perante o rescaldo da II guerra e das novas super-armas capazes de destruir a humanidade. Perdeu-se a fé cega no progresso e na perfeição tecnológica, sucedem-se visões de mundos pós-apocalipse nuclear de franco negativismo e paranóia. Esta perda de inocência abre caminho para tendências como a relativização do real, space operas que recuperam o exotismo da aventura em largos panoramas, a exploração profunda de questões sociais e sexuais utilizando o outro ficcional como metáfora para reflectir sobre problemas reais, experimentalismo literário de base modernista do new wave, ou revisões históricas à luz de hipóteses remotas que alterariam a estrutura do real percuro da história.

Esta evolução conceptual é mais visível no tratamento das questões de género, que evolui da misoginia e infantilidade pubescente na FC clássica para visões fluídas e arrojadas. Esta erosão do tradicional foi trazida por autoras que desafiaram a prevalência masculina na FC e nos têm vindo a legar visões que vão do feminismo assumido à fluidez relacional.

A Ficção Científica evolui nos mercados, com alguns dos seus autores a atingir o estatuto de super-estrela literária com sucessos garantidos de venda. Nos anos 80 emergir do movimento cyberpunk redefine o género, com uma forte componente intelectual virada para uma visão de futurismo hipermoderno digital experimentalista e fragmentário próximo da visão pós-modernista, trazendo o reflexo do modernismo de Ballard para o então novíssimo mundo digital.

Hoje, o género é ao mesmo tempo uma ficção popular de mercado alargado e um palco de experimentação. As fronteiras literárias estão difusas e o intercâmbio entre FC, fantasia, horror e o realismo mágico é tema comum nas obras mais ambiciosas. Persistem as divisões vindas da era pulp entre uma FC mais virada para o entretenimento, um aprofundar da sensibilidade literária e o focalizar na especulação informada reflectindo as problemáticas contemporâneas, em especial no que toca aos impactos da modernidade tecnológica nos sistemas sociais.

É importante sublinhar que se o grosso da FC tem uma fortíssima influência anglo-americana, por questões de afinidade cultural, mercados editoriais, sensibilidade científica e da própria história da evolução do género, este não se resume aos autores ingleses e norte-americanos. A tradição francesa de edição espelha em grande parte a mais conhecida vertente americana, com o género a florescer pós-Verne e Robida em revistas especializadas e colecções editoriais, caso da Fleuve Noir Anticipation, que publicou ao longo de quarenta anos autores como P. J. Hérault ou Serge Brussolo, entre outros criadores de séries marcantes. Omale, de Laurent Genefort, Aurorarama de Jean-CristopheValtat ou La Mécanique du Coeur de Mathias Malzieu são algumas das obras de autores contemporâneos a extravasar o espaço da francofonia com edições internacionais. Também na Alemanha, onde a tradição do fantástico ficcional conta com Kurt Lasswitz como contemporâneo de Wells e Verne, podemos encontrar vozes como a hard SF cosmopolita de Frank Schätzing e a série episódica Perry Rhodan, editada continuamente desde os anos 60 do século XX e que conta agora com sensivelmente quatro mil números, sendo a mais longa série de ficção científica literária em todo o mundo.

Nos dias de hoje assinala-se o surgir de uma ficção científica de voz global, com autores vindos dos quatro cantos do mundo a conquistar espaço e leitores, enriquecendo o género com sensibilidades estéticas e conceptuais que se afastam da visão anglo-americana que historicamente caracteriza o género. Escritores como Lavie Tidhar (israelita), Ken Liu (japonês), Aliette de Bodard (francesa) e Lauren Beukes (sul-africana) recebem prémios de referência, bom acolhimento pela crítica especializada e afirmam-se num mercado global que utiliza o inglês como lingua franca. Autores de países com fortes tradições de edição de ficção científica são traduzidos para um mercado crescente de leitores que procuram sensibilidades literárias culturalmente diferentes da tradição clássica. A esta tendência não são alheias as colectâneas temáticas de contos que misturam autores novos e consagrados, e as sucessoras das revistas pulp como espaço de primeira publicação quer em edição tradicional quer em formato digital.

Para o grande público a face mais visível do género está no cinema, onde a sua presença se assinala logo nos primeiros tempos do cinema. Esta épica legou-nos clássicos do grande ecrã, desde a sátira inocente de Voyage dans la Lune de Meliès, à precisão de Frau im Monde ou à absoluta distopia industrial de Metropolis, ambos de Fritz Lang, à utopia científica de raiz iluminista de H.G. Wells em Things to Come de Alexander Korda.

Até aos anos 50 o cinema de ficção científica dependia dos argumentos e de efeitos especiais que transmitiam a sensação de estranheza dos mundos ficcionais através de cenarismo e dos processos mecânicos de filmagem. A partir dos anos 50 aprofundam-se os temas dos argumentos, com o surgir das visões radicais e do cinema de série B, bem como a complexidade técnica dos efeitos especiais. O cinema espectáculo de FC firmou-se no imaginário popular com obras como 2001 de Kubrick, Alien de Ridley Scott e Matrix dos irmãos Wachowsky. Críticos do género apontam o desequilíbrio entre a raiz literária, pujante mas restrita às comunidades de fãs, e a popularidade do género no cinema de massas, que aproveita a iconografia da ficção científica como elemento decorativo de aventuras de acção ou policial. A FC como adereço possibilitada pela extraordinária evolução da indústria de efeitos especiais caracteriza a larga maioria dos filmes contemporâneos, apesar de excepções como o recente Gravity de Alfonso Cuáron, que ressuscita o puro sense of wonder da exploração espacial, ou The Congress, que nos obriga a reflectir sobre problemáticas contemporâneas de substituição da força laboral humana por meios de automação algorítmica e o espaço abstracto das redes digitais.

A estética da FC ultrapassou os limites literários e afirmou-se no cinema, banda desenhada e em particular no novo media dos jogos de computador. O seu espírito de extrapolação e reflexão  também se encontra para lá das fronteiras dos livros, fazendo-se sentir na exploração do futurismo, nas antevisões especulativas da design fiction, e nas fronteiras do experimentalismo digital de vanguarda. Olhando com nostalgia para a inocência os tempos dos monstros de olhos esbugalhados combatidos por heróis de queixo quadrado empunhando armas de raios e voando com jetpacks, a FC soube continuar a questionar os progressivos desafios que a evolução social e tecnológica veio trazer à humanidade, levando-nos a compreender os dilemas do tempo presente através do imaginar de futuros plausíveis.

2. FC e contemporaneidade


Megatendências vistas como elementos de tabela periódica (Watson, 2012)

Porquê ler Ficção Científica? A primeira resposta é visceral. É divertida. Como resistir à sedução de histórias empolgantes que nos levam ao espaço profundo, ao passado distante, usar tecnologias inauditas, ou conceber o inconcebível?

O mundo contemporâneo em que vivemos é constantemente desafiado pelo novo. Todos os dias nos somos bombardeados com relatos de novas tecnologias, transformações sociais radicais, inauditas maravilhas da ciência que alteram as nossas percepções do real e do possível. Emergem novas profissões, impensáveis há poucas décadas ou anos. As tradições esvaem-se numa modernidade unificada por meios de comunicação à escala global. Ferramentas tecnológicas pervadem o nosso dia a dia, desde os objectos de uso pessoal às infra-estruturas massivas do mundo globalizado. Dependemos de satélites para nos orientarmos nos labirínticos espaços urbanos, a maioria das doenças é controlável por uma vasta gama de medicamentos inimaginável durante milénios. Apesar dos constantes desafios da pobreza e exploração, é inegável que boa parte da humanidade considera normal uma qualidade de vida que, há poucos séculos, nem os mais privilegiados poderiam alcançar.

Vivemos rodeados de tantas maravilhas que nos parecem banais. As ideias técnicas e científicas revolucionárias tornaram-se nota de rodapé nos telejornais. No nosso dia a dia atarefado talvez paremos, por um pouco, para nos maravilharmos com uma nova ideia ou sonhar com o impacto de uma nova tecnologia anunciada. Estamos tão habituados a estas rotinas que depressa as esquecemos. A hipérbole do lançamento de um novo produto de consumo tecnológico depressa é substituída pela hipérbole do lançamento de mais um novo produto de consumo tecnológico, numa lógica cíclica que banaliza a enorme complexidade e conhecimento científico dos objectos tecnológicos.

Tememos o futuro. É-nos difícil conceber o impacto das novas ideias, novas tecnologias, novos modos de viver, novos conhecimentos, do eterno e imenso novo. Sabemos que nos esperam desafios civilizacionais talvez inultrapassáveis, sabemos que nos espera o desconhecido. Cada nova ideia, cada nova tecnologia, cada tendência traz consigo promessas de transformação que mal conseguimos descortinar. Marshall McLuhan, influente teórico dos media que intuiu o que o poder transformativo dos meios de comunicação alterava profundamente formas de conceber o mundo, afirmou que as nossas tecnologias nos modelam de maneiras inesperadas.

A Ficção Científica é um recreio de ideias que nos permite brincar de forma segura com o que nos atemoriza ou intriga. Possibilita-mos um espaço de experiências de pensamento, onde podemos levar ao extremo as ideias que nos atravessam o radar da curiosidade, extrapolar os dilemas contemporâneos e simular as suas consequências num espaço virtual delimitado pela nossa imaginação. É vista na cultura popular como preditora de tecnologias e futuros, mas funciona como uma estrutura que nos permite questionar os desafios contemporâneos. Raramente a FC consegue predizer avanços tecnológicos, embora seja habitual que cientistas e engenheiros se inspirem no género para desenvolver novas tecnologias.

As suas obras reflectem as preocupações das épocas em que foram escritas. Os autores atrevem-se, nos seus e ses, a interrogar os limites teóricos das ciências, da história, da tecnologia, tudo o que constitui a maravilhosa procissão da humanidade. Baseando-se em extrapolações de base científica que tanto reflectem um optimismo ingénuo como um cinismo desencantado com potencialidades e consequências dos desenvolvimentos tecnológicos, ajudam-nos a compreender melhor o mundo contemporâneo fazendo-nos imaginar futuros. Tudo isto empacotado em histórias divertidas e empolgantes que mantém vivo um pouco de inocência e espirito juvenil de aventura e exploração à descoberta do mundo.

O género vai muito para além da ficção especulativa de base científica, indo beber a variadas fontes que por sua vez o modelam e transformam. Associamos a FC a iconografias específicas Foguetões, naves espaciais e habitats no espaço são algumas das mais clássicas imagens associadas ao género. Cientistas loucos e donzelas em busca de salvação são talvez dos mais banalizados ícones do género. Visualizamos robots mecanismos complexos conscientes de si próprios, sexualizados como objecto de desejo ou mesclando o homem com a máquina. Reflectimos a diversidade de culturas humanas recriando-as como aspectos de vastas civilizações extraterrestres. Projectamos os devaneios arquitectónicos em urbanismos futuros, utopias bucólicas de arquitecturas arrojadas, colisões multiplanares de portentosas edificações ou vida a formigar na decadência catastrófica do betão. Recriamos e antevemos dispositivos técnicos que nos fascinam pelas novas possibilidades que fazem intuir. Tememos a possível subserviência a tecnologias que se tornam mais avançadas do que os seus criadores. Revemos fascínios, xenofobias e medos da relação com o outro através do simbolismo dos alienígenas ficcionais e das suas exóticas culturas. Deleitamo-nos com a construção de mundos ficcionais num sólido imaginário verosimilhança aos mundos de fantasia dos livros.


 Collage de Max Ernst, a recordar que as visões especulativas sobre tecnologia não são recentes.

Numa recente entrevista o escritor e cientista Gregory Benford referiu que "technology is the quiet driver of most modern history", algo que é recordado no ar frenético da discussão mais mainstream sobre as transformações sociais trazidas pela tecnologia, em discursos que oscilam entre surpresa com a rapidez transformativa,  deslumbre com as delícias dos gadgets ou temores catastrofistas sobre o colapso iminente da humanidade perante a ameaça dos teares mecânicos/fábricas tayloristas/máquinas inteligentes/inteligências artificiais/redes sociais/isolamento na internet. Há mais de um século que o imaginário da Ficção Científica nos leva a olhar em frente, preparando-nos para o futuro real em que não imaginamos futuros plausíveis ou impossíveis, em essência reflectindo no impacto que a ciência e tecnologia têm sobre a humanidade.

3. Vertentes/Géneros
Listar as diversas variantes deste género literário é um trabalho exaustivo e quase impossível. As abordagens temáticas que permitem agrupar obras num determinado sub-género têm na FC uma enorme variância. Deixamos aqui algumas das principais vertentes, sem esgotar as possibilidades.

Ficção Científica: conceito abrangente, que define ficções onde o tema central envolve a exploração de conceitos científicos e tecnológicos.
Hard SF: A ciência e tecnologia são os seus temas principais. Fortemente baseada em detalhar de conceitos cientíticos e realismo cientítico. Conhecida pelo uso de infodumps, técnica narrativa em que um personagem explica em grande detalhe ao narrador, e por extensão ao leitor, os fundamentos sociais, científicos ou técnicos do mundo ficcional imaginado pelo autor.
FC Militarista: tem uma tonalidade distintamente militar. Extrapolação de guerras futuras, com personagens inseridas em meios militaristas. A tecnologia é um adereço em ficções centradas em ideais de honra, heroísmo e exploração de futuros campos de batalha.
Robótica: tem os robots como tema central, explorando conceitos de inteligência, sexualização e emoções, ou domínio das máquinas sobre a humanidade.
FC Social: imaginar sociedades futuras como forma de extrapolar e reflectir sobre aspectos das sociedades contemporâneas, podendo ser satírica mas dando destaque à tecnologia.
Space Opera: com carácter épico, caracteriza-se pela sua visão abrangente, habitualmente situada em vastas paisagens ficcionais e universos alargados.
Steampunk: mescla de FC com história alternativa e estética vitoriana, com particular prevalência na tecnologia a vapor dos primórdios da era industrial. Expressa-se por via literária, artística, gráfica, cinematografia e moda.
Cyberpunk: lida com as visões sobre cibernética, tecnologia digital, virtualidade e relação entre o homem e computador, prostética digital e declínio social.
Biopunk: foca-se na reflexão sobre engenharia genética, manipulação genética, modificações corporais, eugenia.
Nanopunk: foca-se na nanotecnologia.
Viagens Extraordinárias: género que antecede o conceito de FC. Envolve o périplo de um grupo de personagens por mundos fantásticos, utilizando ou não elementos tecnológicos. O foco é na aventura e exploração.
Romance Científico: termo usado para designar a proto-FC, caracteriza o trabalho dos primeiros escritores a explorar o género.
FC Gótica: mescla de elementos da ficção gótica (magia, criaturas míticas) reinterpretados à luz da ciência.
FC Mundana: concentra-se no realismo das possibilidades tecnológicas realizáveis com a tecnologia dos nossos dias.
Horror/FC: cruzamento entre terror e FC.
FC/Fantasia: cruzamento entre fantasia e FC.
FC Apocalíptica: exploração de acontecimentos passíveis de provocar a extinção da humanidade.
FC pós-apocalíptica: lida com alterações radicais à sociedade humana após acontecimentos cataclísmicos.
Invasões Alienígenas: invasões extraterrestres da terra.
Viagens no tempo: viagens ao passado ou futuro.
História Alternativa: explora a possibilidade de divergências ao percurso da história
Realidades paralelas: lida com conceitos de universos paralelos e outras dimensões.
Distopias: visões de futuros social e politicamente reprimidos, com perversão de valores sociais e morais.
Western no Espaço: replica a iconografia do velho oeste em ambientes espaciais.

4. Ligações
Algumas hiperligações para páginas web sobre FC e F em português. Não sendo uma lista exaustiva, é um ponto de partida para descobrir a pequena mas dinâmica comunidade de leitores e escritores do fantástico português. Inclui páginas de crítica literária, webzines que publicam autores lusófonos, agregadores de notícias e arquivos temáticos.
Bibliowiki: Repositório de informação bibliográfica sobre edição de livros de género fantástico em português. Organizado por Jorge Candeias.
Fórum Fantástico: Encontro anual dedicado à FC e F nos domínos da literatura, cinema e outras artes.
Trema : Oficina de escrita e revista literária, destaca diariamente na sua página notícias e crítica literária sobre FC e fantástico de Portugal, Brasil e do mundo. Dinamizado por Luis Filipe Silva e Rogério Ribeiro.
ScoopIt Ficção Científica e Literária: Organizado por Jorge Candeias, agrega artigos sobre FC em português, com grande destaque para a lusofonia.
ScoopIt Gothic Literature: Agregador especializado no gótico literário.
ScoopIt F-C: Agregador de ligações sobre ficção científica na literatura, cinema, jogos e cultura popular.
Revista Bang!: Única revista de publicação regular portuguesa, gratuita, editada pela Saída de Emergência. Mantém um site com conteúdos actualizados, com destaque para a ficção portuguesa e brasileira.
Projecto Adamastor: Sem ser direcionado a géneros literários específicos, o projecto disponibiliza textos literários portugueses de domínio público em suporte digital com formatação cuidada.
Colecção Argonauta: Página dedicada à mais longa colecção de literatura de FC em Portugal. Se as traduções são consideradas na generalidade bastante más, a colecção distingue-se pelo design arrojado das capas e por ter, durante décadas, publicado FC com periodicidade mensal.
Ficção Científica em Portugal: Página dedicada à recolha bibliográfica da edição de FC em Portugal
Breve História da FC Portuguesa: Curta história do género, traçada por Álvaro Holstein.
FC Portuguesa: apresentação de Luís Filipe Silva sobre os primórdios da ficção científica portuguesa.
Os Mundos Imaginários do Fantástico Português: Artigo do cineasta e escritor António de Macedo sobre a génese do fantástico da literatura renascentista ao século XX.
Clockwork Portugal: Associação dedicada a divulgar o estilo steampunk nas vertentes literária, de moda e cinematográfica. Organizadores da EuroSteamCon portuguesa.
International Speculative Fiction: Editada por Roberto Mendes, esta revista digital focaliza-se na edição traduzida para inglês de autores não-anglófonos.

Bibliografia
Aldiss, B., Wingrove, D. (1988). Trillion year spree: the history of science fiction. Londres: Grafton Paladin.

Brynjolfsson, E., McAfee, A. (2014). The Second Machine Age: Work, Progress, and Prosperity in a Time of Brilliant Technologies. Nova Iorque: Norton.

James, E., Mendlesohn, F. (2003). The Cambridge Companion to Science Fiction. Cambridge: Cambridge University Press.

Rothstein, E., Marty, M., Muschamp, H. (2003). Visions of Utopia. Nova Iorque: Oxford University Press.

Slusser, G. (2014). A scientist-author at the heart of Hard Science-Fiction. Institute for Ethics and Emerging Technologies, 20 de Fevereiro de 2014. Obtido a 20 de Março de 2014 no url http://ieet.org/index.php/IEET/more/benford20140220

Watson, R. (2013). Trends and Technologies for the World in 2020. 14 de fevereiro de 2013. Obtido a 21 de Março de 2014 no url http://toptrends.nowandnext.com/2013/02/14/trends-technologies-for-the-world-in-2020-2/

(Nota 1: O Roberto Mendes observou que o ISF se dedica a autores não anglófonos. É a palavra certa para o que eu queria dizer. O texto foi devidamente corrigido onde estava "esta revista digital especializa-se na edição traduzida para inglês de autores europeus". Adicionei o agregador Gothic Literature, também focalizado no fantástico literário.)