sábado, 30 de julho de 2005

Post Scripts



Moby Dick, or, The Whale
Electronic Text Center | Moby Dick
The Narrative of Arthur Gordon Pym of Nantucket
Uighur People

Se estivesse em São Francisco, participava nisto: uma flashmob de zombies... daria asas ao lado mais macabro da minha imaginação, e lá estaria. Seria divertidíssimo fantasiar-me de heroi de alguns dos meus filmes favoritos.

Por incrível que pareça, viver na Ericeira e ir regularmente à praia são duas coisas mutuamente incompatíveis. O viver implica sempre tarefas, limpezas de casa, compras, trabalho. E o pulinho até à praia, aquele que se promete dar no fim de cada dia, acaba sempre por ser adiado. A absurda normalidade das rotinas da vida interfere irremediávelmente com o prazer de desfrutar do sol e do mar. O absurdo desta vidazeca pequeno-burguesa é imenso. O esforço financeiro que se faz para ter uma vida agradável não nos permite desfrutar dessa vida pela qual lutámos. Um paradoxo das sociedades modernas.



E naqueles dias de sol e calor, com o mar meeesmo convidativo, azulinho e plácido, quem é que consegue ir trabalhar sem engolir em seco, desviar bruscamente o olhar ao mar e pensar para si mesmo "quem me dera, mas... mas... mas..., ah se eu pudesse..."

Mesmo assim, dá sempre para roubar um tempo às rotinas entediantes dos abastecimentos em supermercados e formalidades financeiras para dar um pulinho às nossas praias rochosas apanhar coisinhas como as que estão aqui representadas - é uma velha obsessão minha, o apanhar de conchinhas.



Leiam (ou releiam, se for caso disso) o primeiro parágrafo de Moby Dick, de Herman Melville. Como já sei que não vão ler, cá vai ele:

Call me Ishmael. Some years ago--never mind how long precisely--having little or no money in my purse, and nothing particular to interest me on shore, I thought I would sail about a little and see the watery part of the world. It is a way I have of driving off the spleen and regulating the circulation. Whenever I find myself growing grim about the mouth; whenever it is a damp, drizzly November in my soul; whenever I find myself involuntarily pausing before coffin warehouses, and bringing up the rear of every funeral I meet; and especially whenever my hypos get such an upper hand of me, that it requires a strong moral principle to prevent me from deliberately stepping into the street, and methodically knocking people's hats off--then, I account it high time to get to sea as soon as I can. This is my substitute for pistol and ball. With a philosophical flourish Cato throws himself upon his sword; I quietly take to the ship. There is nothing surprising in this. If they but knew it, almost all men in their degree, some time or other, cherish very nearly the same feelings towards the ocean with me.

Nunca pus os pés num navio, muito menos num baleeiro que velejará à volta do mundo e cuja viagem terminará no fim do mundo, como nas aventuras do meu homónimo em The Narrative of Arthur Gordon Pym of Nantucket de Poe. Mas compreendo bem aquela sensação, whenever it is a damp,
drizzly November in my soul
, o novembro a carregar a alma, a cabeça a pesar sob a pressão das responsabilidades prementes e dos sonhos esquecidos. Sempre me fascinou com que facilidade se me aclarava a mente pelo simples contacto com o mar, de preferência numa praia rochosa na maré baixa, com todas aquelas poças entre as rochas, espaços fervilhantes de vida fascinante, e toda aquela efémera paisagem quase alienígena que só existe naqueles momentos breves antes de ser submersa pelas ondas.

Fascinado pela contemplação de todos esses recantos, nenhum fiapo de nevoiro sobrevive numa qualquer alma mais tenebrosa.



Ainda estou abalado pela leitura de As Partículas Elementares, de Michel Houellebecq. O livro é, simplesmente, demolidor. Um depressivo retrato dos vazios do nosso individualismo. Quero criticar o livro, mas as frases estão difíceis de sair. Quando tiver prontas as minhas observações sobre o livro, prepararem-se para serem chocados. Houellebecq é, no mínimo, um tipo tramado. Um verdadeiro escritor maldito, da mais fina tradição. Mas se os livros malditos nunca me chocaram por aí além, fascinando-me mais pelo ultrapassar de convenções do que pelos conteúdos potencialmente escabrosos, este chocou-me. Se calhar, porque me revi como um elemento da sociedade que Houellebecq tanto se diverte a demolir.

Tenho de me ir. Preparar o jantar, um jantar condigno com um fim de tarde na praia. Nada de marisco, que a contenção orçamental não permite. Umas costoletazinhas de borrego grelhadas polvilhadas com mistura harissa de especiarias para dar um toque exótico, acompanhadas de uma frittata de cebola, tomate, pimentos vermelhos, amarelos e laranjas, e um legume qualquer que uma amiga me deu que não sei como se chama. Parece-se com um pepino, mas não o é, e cru é intragável. Fritado, fica com uma consistência tipo cogumelos, absorvendo bem o molhinho da frittata, uma mistura de azeite, molho inglês e os sucos dos legumes fritos. Podem não acreditar, mas é uma delícia. Um dia destes, se me lembrar, ponho aqui algumas receitas culinárias mais ou menos rápidas que dão pouco ou nenhum trabalho, com bons sabores garantidos, e que ao contrário daquelas receitas sempre tão bonitas que aparecem nos livros e revistas de culinária, não falham porque falta aquele ingrediente exótico especial. Sabem, aqueles ovos de codorniz sul-africana, ou o molho de marisco tailandês, ou ou gengibre seco do nepal, ou anchovas, endívias, lentilhas e outros ingredientes só localizáveis nos confundios de obscuras lojas frequentadas apenas por conoisseurs. A sensação é extremamente irritante: ao lado de uma fotografia com um prato suculento e apetitoso, aparece a lista de ingredientes com ingredientes absolutamente estapafúrdios, impossíveis de encontrar na mais bem apetrechada das cozinhas. É um mal recorrente dos livros de culinária... e estou apenas a falar daqueles livros de culinária fácil, do tipo "receitas rápidas e saborosas", nada de livros de cozinha nepalesa ou uigur do norte da mongólia (se é que por lá há uigures, que não, não são inventados, são uma daquelas etnias bizarras da àsia central, os que atacam e raziam com a velocidade do falcão).

quinta-feira, 28 de julho de 2005

Links

Futuro House Arquitectura futurista dos anos 50.

Michael Palin's Travels antigo membro dos Monty Python, Michael Palin reinventou-se como escritor de viagens. Os seus livros estão agora online.

Cronologia do Inferno



The Third Reich Day by Day, editado por Peter Darman
Grange Books, 2004

Wikipedia | Nazism

Perdidos por entre as prateleiras das livrarias Bertrand deste país, encontram-se uns livrinhos bem em conta que alimentam uma velha obsessão minha - a fruição e contemplação de imagens de aviões, completa com quadros detalhando a potência dos seus motores, a capacidade destrutiva das suas armas e o empuxo dos seu jactos, em kilonewtons, claro. Nessas prateleiras, onde os livros sobre veleiros e os roteiros turísticos se encavalitam por cima de compêndios aeronáuticos sobre aviões de caça ou bombardeiros, encontram-se por vezes livros de difícil classificação. Como este The Third Reich Day by Day, editado por Peter Darman. Para livro de história, é demasiado sucinto e bem ilustrado. Está repleto de fotografias da época, que ilustram um livro que é uma simples cronologia dos anos do III Reich, desde os primórdios do partido Nazi ao apocalíptico final da IIª guerra mundial. Para livro dedicado aos hobbys da aeronautica militar, ou outros tipos de obsessões com materiais e equipamentos de guerra destinados ao público dos generais de sofá, é demasiado abrangente. O putsch de munique está metido no mesmo saco do que a construção do Scharnorst, imagens de panzers e bombas V1.

Sendo uma cronologia, o livro tem a interessante particularidade de não tirar conclusões. O prefácio e o posfácio apenas sintetizam o conteúdo do livro, sem nenhuma daquelas grandes conclusões sobre o horror nazi. Não tirando conclusões, obriga-nos a ler atentamente os resumos anuais dos acontecimentos do III Reich, em ordem cronológica, e obriga-nos a fazer as ligações e a tirar as nossas próprias conclusões. Com isso, este livro torna-nos agudamente conscientes do horror neurótico dos anos nazis, bem como das reais condições de ascensão ao poder do partido nazi.

Após a Iª Guerra, a Alemanha era um país profundamente destruído e humilhado. Verdadeiras legiões de soldados desempregados, que poucos anos antes tinham decidido dar a vida pela pátria na frente ocidental, viam agora de rastos a pátria pela qual se bateram, pela qual tantos companheiros tiveram mortes horríveis, estropiados na frente ocidental. Com o poder político debaixo de pesadas restrições exigidas pelos tratados de paz, forçados a pagar milionárias reparações de guerra e com a economia deprimida, os alemães viam-se no fundo de um profundo poço de onde a democrática república de Weimar não conseguia tirar o país. Foram essas frustrações, essas emoções de patriotismo falhado, que Hitler e os responsáveis do partido Nazi manipularam para adquirir apoio popular. A raiz da palhaçada nazi, com todos aqueles uniformes, desfiles militares, organizações paramilitares (como a Juventude Hitleriana, onde militou Ratzinguer, na altura rapaz de uniforme nazi e hoje papa) está na própria génese do movimento, criado a partir do descontentamento de ex-soldados que após a desmobilização não encontravam nada de melhor para fazer do que pavonearem-se nas ruas com uniformes semelhantes aos da tropa (mas com emblemas mais espampanantes) e provocarem confrontos com grupos de comunistas.

A Alemanha envergonha-se fortemente do passado Nazi, mas para seu eterno crédito a chegada ao poder dos nazis não foi a união nacional em prol do fascismo que a história do IIIº Reich aparenta. A sociedade em geral não dava o seu voto ao partido nazi, só começando a apoiar o nazismo após a depressão de 1929, que arrasou a sociedade alemã. É compreensível este apoio, perante o desespero de uma economia arruinada, fome e desemprego. E, mesmo assim, não foi um apoio generalizado. Os sectores mais tradicionais da sociedade alemã (os grandes industriais e o exército alemão) viam com desprezo os nazis, que eram considerados pouco mais do que um bando de arruaceiros desprovidos de ideiais (que o eram, efectivamente). A aliança entre nazismo e estes sectores da sociedade deu-se sob a sombra da outra ameaça totalitária que pesava sobre a alemanha, a do comunismo. Hitler apenas chegou ao poder através de votos, e mesmo assim só o conseguiu graças a negociatas políticas com as forças da época. A ascensão do nazismo não é uma história de uma gloriosa revolução fascista, mas sim uma amálgama de episódios degradantes de arruaças e confrontos nas ruas, retórica demagógica desprovida de ideiais e negociatas políticas.

Sendo assim, como é que o IIIº Reich se tornou possível?

Chegado ao poder, Hitler rápidamente tomou medidas que concentraram nas suas mão poderes ditatoriais. Para evitar a revolta da sociedade civil, rápidamente nomeou os seus sequazes para postos-chave no seio do estado e administração pública da alemanha. A tomada de poder por Hitler não passou de uma farsa, com a conivência dos industriais e das forças armadas, que apesar de desprezarem os nazis temiam ainda mais os comunistas. Vendo-se com as rédeas do poder nas mãos, os nazis começaram a transformar profundamente a sociedade alemã, com os seus festivais neo-pagãos de revivalismo de tradições germânicas, instituições destinadas a fortificar o nazismo na população (como a juventude hitleriana e a organização de tempos livres para os trabalhadores), propaganda, e um renascer da máquina de guerra alemã (um renascer lucrativo para os industriais que apoiaram a ascensão ao poder de Hitler). No fundo, uma aplicação massificada da velha máxima romana, pão e circo.

Como um cancro, o nazismo contaminou a sociedade alemã, que se viu totalmente envolvida, mesmo que a contragosto, no imaginário e instituições nacional-socialistas. O resultado desta farsa, o holocausto e o apocalipse que foi a IIª Guerra Mundial, e o surgimento de uma alemanha pacífica e profundamente democrática das cinzas das loucuras passadas, já são sobejamente conhecidos. A virtude deste livro é que sendo uma cronologia, obriga-nos a ver o nazismo como a progressão de uma doença que não foi atempadamente tratada. Como um cancro, começa pequeno e insidioso, e quando se deixa crescer um pouco alastra a grande velocidade, espalhando todos os seus tentáculos pelo corpo da sociedade alemã.



O nazismo e a sociedade alemã, obviamente, não podem ser resumidos a estas minhas pequenas conclusões. Houve outros factores a influenciar a ascensão do partido e a manter o seu poder. A propaganda nazi, espantosamente eficiente, ajuda a explicar o apoio tácito ou não dos alemães mesmo nos piores momentos da IIª Guerra. O regime nazi estabeleceu salários mínimos e criou condições para férias de qualquer trabalhador, que passaram pelo estabelecimento de parques de campismo (alguns dos quais ainda hoje em funcionamento) à criação de cruzeiros para trabalhadores. Nada mau, para os anos trinta do século XX. Estas medidas asseguraram o apoio do lumpen alemão (aquilo a que chamamos o povão). E, em termos de emprego, sempre havia a Wermacht, grande empregadora de homens. A conquista de lebensraum beneficiou todo o povo alemão durante os anos da guerra, com a pilhagem dos recursos dos paises invadidos a servir de combustível para a prosperidade alemã. É de notar que o regime só colapsou com a morte de Hitler. Até esse momento, poucas foram as vozes que se ergueram contra ele, e mesmo perante a alucinação final nenhum dos seus comandantes se atreveu a contrariar as suas ordens. É também de salientar que a sociedade alemã combateu a ascensão nazi, e mesmo durante o regime houve dissidências e movimentos de resistência, que foram bárbaramente esmagados.

Pessoalmente, sempre que leio ou vejo comentários sobre os alemães e o nazismo, penso que os alemães já foram suficientemente punidos pela loucura do nazismo. Sessenta anos depois do fim do nazismo, é mais do que tempo de avançar em frente, sem que as lições do passado sejam esquecidas.



Uma ilação importante a retirar neste princípio de século, em que alastram os ideiais liberais de puro economicismo e redução de custos, é que a demagogia alimenta-se da pobreza. Numa sociedade próspera, a doença nazi numa teria ganho raízes. Há medida que vejo os neoliberais a tentar desmantelar as estruturas sociais que asseguraram estabilidade e prosperidade à Europa, deixando-nos cada vez mais expostos às predações do capitalismo desenfrado, pergunto-me se não estarão a semear as condições para um perigoso ressurgimento de ideiais fundamentalmente semelhantes aos fascistas. É certo que os movimentos de extrema direita são profundamente desvalorizados e ridicularizados, mas será que perante a perspectiva de desemprego e evaporação de direitos sociais, aliada ao envelhecimento populacional e à pressão demográfica dos imigrantes não europeus, cujas consequências se irão tendencialmente agravar nos próximos anos, os europeus não regressarão aos ideiais fascistas e nacionalistas como forma de defender aquilo que percebem como seu?

Esta ideia assusta-me. Profundamente.

quarta-feira, 27 de julho de 2005

Post scripts



Tea Glossary
Space.com | STS-114 Return to Flight
DECO

Se tenho estado mais silencioso nestes dias, deve-se a ter andado a ajudar a minha namorada a escolher um vestido para o casamento do irmão. Quem conhece as mulheres, sabe que com elas a tarefa de escolher uma farpela adequada é àrdua, complicada e esgotante. Nunca consigo perceber como é possível que o lado feminino da nossa espécie se torture tão profundamente com as finas diferenças existentes entre dois trapos exactamente iguais. É dose! A eterna questão do fica bem ou não é, pura e simplesmente, irresolvível. A paciência necessária para aturar consortes em demandas de vestimentas não tem medição possível.

Ontem exultei com a descolagem do Space Shuttle, numa missão de regresso ao espaço. Hoje preocupo-me. Serão os danos no vai-vem terminais, ou possibilitarão uma reentrada em órbita e aterragem em segurança? Vou seguir atentamente os desenvolvimentos desta missão à órbita terrestre. Não é bem o espaço interestelar, mas serve.

Pelo lado bizarro da ocupação de tempos livres, Paper Forest. Um blog sobre modelos que se constroem em papel. Nada de aviõezinhos ou origamis... estamos a falar de castelos e orgãos que tocam. Twilight zone, só pode mesmo ser...

Prometo, e vou cumprir: críticas/observações aos livros que adquiri na fnac (essa loja da minha perdição) esquecendo um pouco a falta de dinheiro (se ficar este mês com saldo negativo, que se lixe, estou farto de equilibrar o iniquilibrável): As Particulas Elementares, de Michel Houellebecq, Histoires Urbaines de Julius Knipl, Photographe, de Ben Katchor, e Paul Auster: City of Glass, adaptado por Paul Karasik e David Mazzucchelli. E já que estou com a mão na massa, talvez, mas só talvez, o que significa certamente, Kafka Desiste!, de Peter Kuper. Mas primeiro tenho de os ler. Se estas chuvas continuarem, como prenuncia a imagem que ilustra este post, o sofá e um cházinho tarry lapsang soochong ajudarão nas leituras. Se o sol regressar, melhor. Tempero os livros com uns pingos de àgua salgada.

terça-feira, 26 de julho de 2005

Lift-Off!


Nasa
Space.com

Estava no carro, a regressar de Mafra, quando ouvi as boas e excitantes notícias: o vai-vem espacial está em órbita. Finalmente! A excitação foi ajudada pela cobertura dada pela Antena 2: transmitiram parte dos comentários dos controladores de voo da nasa e os comentários da comandante do vai-vem. A adrenalina corria pelo meu sangue quando anunciaram que o shuttle estava em Max-Q (ponto de acelaração máxima)!

Estou demasiado emocionado para escrever um post decente. Emocionado pelo sonho da exploração espacial!

segunda-feira, 25 de julho de 2005

Asilo de São Bento

As notícias e os comentadores políticos falam à boca cheia de Mário Soares como candidato à presidência da república. Os jornais já o anunciam, com direito a letra de corpo bem grande na primeira página, como candidato certo. Sendo eu o apolítico distraído que sou, ainda não me dei ao trabalho de averiguar a veracidade da ideia. Mas uma coisa é certa: todos os humoristas e cartoonistas deste país só têm a ganhar com Soares novamente na presidência. Ponham-se lá na pele deles: sempre que faltar assunto para criticar, podem sempre recorrer a piadas do tipo asilo de s. bento, presidência esclerosada da república, regresso do morto-vivo, brigada do reumático contra-ataca, o regresso de muletas dos capitães de abril, e outras que tais.

Sinceramente.

Eu inclino-me à esquera, que isto os ventos de direita são muito incertos. Mas será que a esquerda portuguesa não tem melhor para a representar do que um típico reformado (ou pior, um poeta que eu francamente espero que seja melhor deputado do que poeta, a bem das nossas leis)? O meu voto vai à esquerda, mas nunca no Sr. Soares. Ele que se deixe estar na sua dourada reforma, gozando da estima do povo português (merecida), e não se ponha com senilidades presidenciais. Um presidente que me represente jamais poderá ser um caquético esclerosado. O que este país precisa é de sangue novo, ideias novas. Não quero com isto tirar méritos a Soares, mas sim sinalizar que sou um português farto do triste fado da saudade.

Estamos no século XXI, temos de agir como tal.

Links

Links ainda sem comentário (ficam aqui para eu não me esquecer deles)

DJBC
Ok/Cancel

Seis da matina



Seis da manhã. Um manto de nevoeiro cobre toda a ericeira. A calma e o silêncio só são quebradas pelo ocasional grasnar de patos ou cacarejar de galinhas. Omnipresente como ruído de fundo, o bramir do mar, agora muito calmo. Momentos de perfeita paz.

Boletim Meteorológico, II

Ontem escrevi o texto pela hora do meio dia, com direito a sirene dos bombeiros. E esqueci-me dos rituais domingueiros lusos. Claro que àquela hora as estradas estavam desertas. Meio dia é hora de almoço, e hora de almoço que se preze é passada a enfardar a pança num restaurante. Só depois da pança bem cheia, com a barriga tão pesada que as pernas não a aguentam, é que se passeia de carro nas filas da estrada. À tarde, a estrada nacional arrastava-se de tanto carro em passeio domingueiro.

domingo, 24 de julho de 2005

Boletim Meteorológico

Mais uma vez, o peculiar micro-clima da Ericeira trocou-me as voltas e obrigou-me a mudar os planos. Quando comecei a ruminar este post, ontem à tarde, estava um fim de tarde fantástico, com um sol poente a esteirar-se em tons dourados sobre um mar plácido. Digo ruminar porque isto de escrver um blog tem que se lhe diga. Geralmente começo a ruminar os meus posts na cabeça um ou dois dias antes de os escrever e publicar. De maneira que o post ia ser sobre os belíssimos dias de domingo na ericeira, e a maneira como a vila se enche de pessoas, com as estradas congestionadas por filas de condutores domingueiros que acham que a melhor forma de passar um domingo a descansar e a relaxar depois de uma semana a enfrentar o trânsito da IC19, da A1 ou das ruas de lisboa é ficar paralisado numa fila gigantesca de trânsito (já vi dias em que o trânsito já começava a parar na Malveira) na estrada nacional. Caso eventualmente, após horas de condução em primeira-travão, primeira-travão, consigam entrar na vila da Ericeira, é só para darem voltas desesperados com a falta de lugares de estacionamento (isto é uma vila, não é um silo de automóveis), com as ruas cheias de automóveis. Visão dantesca, sabendo eu bem como as ruas aqui da vila mal dão para um carro.

Só se chover, torrencialmente, é que isto não acontece. Todos os domingos são dias de peregrinação à vila. O passeio dos tristes, com pára-arranca garantido da partir de Mafra, Sintra ou Ribamar, levando a umas voltas desesperadas pelas zonas da vila onde se pode estacionar, um circuito que passa pelos navegantes, santa marta, furnas e em caso sério, s. sebastião. No centro da vila, ao pé dos correios, nem pensar! Depois de tanto tempo a tentar chegar à vila, talvez haja tempo para um passeio pelas furnas, para apanhar uns salpicos das ondas que sempre insistem em lá bater, ou um cafézinho nas esplanadas do jogo da bola. Se se madrugou (quem consegue conceber, quanto mais imaginar, a noção de madrugar a um domingo?), talvez consiga estacionar o veículo a tempo de um peixinho grelhado nas furnas ou nos restaurantes da avenida eduardo burnay (avenida é um eufemismo). Claro que não nos podemos esquecer de uma correria até à pastelaria para comprar uma caixinha de ouriços, o doce típico cá da terra.

É assim a vida nesta típica vila piscatória à beira mar (é assim que vem descrita nas brochuras turísticas).

Ao domingo, o nativo consciente da vila (ou aquisição recente como eu) evita a Ericeira, a menos que faça o seu dinheiro e os seus negócios a partir desta massa domingueira de turistas masoquistas.

Durante a semana, a vila está quase deserta, com ruas calmas e restaurantes acolhedores. E só me resta lamentar-me por, estando empenhado até às orelhas como estou pelo privilégio de ter apartamento com vista para o mar, não ter dinheiro para tratar por senhor seguido de nome próprio os donos de uns restaurantes da terra que eu cá sei. Pelo menos aprendi a cozinhar... e sempre vou tendo dinheiro para umas cervejinhas. Cervejinhas essas tomadas na esplanada do novo centro da ericeira, nas esplanadas do fórum S. Sebastião, agora embelezado e arranjadinho com jardim e vista (que sempre teve) para o atlântico. Imperiais com cheirinho a maresia. Digo-vos, aquecem o sangue e dão vida ao cérebro.

A calma ericeirense só é alterada pelo verão. Aí a vila enche-se, mas para quem já a conhece a coisa até nem é assim tão intolerável.

Pois é. Esperava eu dia solarengo, com filas de trânsito visíveis da minha janela na estrada nacional entre a curva de ribeira de ilhas e o parque de campismo, e sai-me isto. Da minha janela só se vê cinzento. Algum desse cinzento parece matizado, com alguns tons e brilhos, e é assim que distingo o mar. A estrada está deserta, por enquanto.

sábado, 23 de julho de 2005

Post Scripts



Os belos dias da Ericeira: meio dia nas furnas, brisa fresca, céu cinzento e mar a condizer. Que fresquinhos são os dias de verão aqui na vila...

Visão terrível, esta manhã, ao chegar ao cruzamento principal da Ericeira. Um animal, quase inidentificável, debatia-se em violentas convulsões na estrada. Vítima de atropelamento, o animal aparentava ter a cabeça esmagada, e estava moribundo num sofrimento atroz. Espero estar enganado. Espero que o animal tenha apenas membros partidos, e que os automobilistas que depararam com ele o tenham levado a um veterinário para ser tratado, ou abatido.

Fiquei profundamente chocado e entristecido. Como é possível tanta crueldade? É certo que o atropelamento foi acidental, mas a crueldade de quem deixou o animal entregue a uma morte horrenda é indescritível. Provávelmente, olhou para o lado, pensou "bem feito, não se tivesse metido à frente do carro, cabrão do bicho que se calhar me amolgou o carrinho" e seguiu viagem, enquanto os restos do bicho se contorciam no meio da estrada.

Foi uma visão horripilante que se gravou na minha mente, que me revolta as entranhas só de pensar no que vi.

As horripilâncias continuam mal se liga um televisor e nos surgem mais imagens de atentados terroristas, desta vez numa estância turística no Egipto. O terrorismo é uma guerra cobarde, levada a cabo por mártires que se sacrificam para destruir vidas inocentes. Com as forças militares não se metem os terroristas. É mais fácil, e mais apelativo, explodir dezenas de cidadãos incautos que apenas querem viver a sua vida. Escondem-se por detrás de um pretenso islamismo de jihad, mas não passam de cobardes assassinos.

Por vezes pergunto-me se estes ataques são os indícios da queda da civilização ocidental. O que terão os romanos pensado quando começaram a ver as primeiras tribos bárbaras a aproximarem-se do seu império?

Sem assunto.

Hoje não me ocorreu nada. O meu cérebro é um vazio, nada ocorre, nenhuma reacção desperta os neurónios do seu torpor biológico. Nenhum pensamento corre como uma brisa pelos vastos desertos do meu cérebro. Estar sem assunto é sinal de que não pensei em nada, de que não descobri nada, de que nada de novo surgiu nos meus horizontes. Nenhuma ideia nova veio preencher espaços vazios entre os neurónios do meu cérebro. Não aprendi nada de novo, e os dias são passados num estupor de torpor mental, num estado vegetativo sublime. Nada supreende, nada excita. Nem o tédio consegue despertar alguma reacção, por ínfima que seja. Hoje estou sem assunto, e pronto. Não vale a pena tentar arrancar ideias de onde elas não existem. Terreno àrido é o meu cérebro por hoje, terra infertil incapaz sequer de gerar ervas daninhas.

sexta-feira, 22 de julho de 2005

Post Scripts

Curioso sobre a existência ou não de leitores, instalei um contador da bravenet no blog. No dia seguinte, 41 hits! Fui ao site da bravenet verificar o tráfego, encontrei a lista de referidores e... algo está mal. Fui referido (tráfego ao meu blog via link noutro site) por blogs que não tem nada a ver comigo... e um link para mim nem sequer aparece. Não percebo.

Como tenho andando arredado de notícias e jornais, hoje a notícia de polícias ingleses a abaterem suspeitos de possíveis atentados terroristas a tiro no metro de londres assustou-me. Ainda não li nada, nem na bbc mobile, mas parece que explodiram mais bombas em londres. Londres está sob um novo blitz, com fanáticos islamitas no lugar dos Heinkels escoltados por Messerchmits que largavam bombas depois de sobreviver às vagas de spitfires e hurricanes. O primeiro blitz foi mais cavalheiresco. Este blitz terrorista é sujo e deprimente.

No post de ontem sobre o telefonema inquietante, decidi mostrar à minha velha amiga (velha, mas não no sentido de cabelos brancos caquéticos) uma imagem da verdadeira ericeira: a vila a espraiar-se pelas ribas, debaixo de um pesado céu que prenuncia tempestade. Por via das dúvidas, digo já que tirei a foto no inverno. Mesmo assim, penso que é uma imagem que caracteriza esta terra de microclima tão peculiar. Neste preciso momento, tenho a certeza que de faro a freixo de espada a cinta, de almeida a vila nova de cerveira, da foz do minho à foz do guadiana o sol brilha abrasador sobre um país ressequido. Aqui na ericeira os indícios desse tempo estão no calor que faz. O sol está bem seguro, escondido atrás de uma espessa camada de nuvens.

Cada vez menos percebo os turistas. Se querem sol e praia, a ericeira não é o melhor sítio para isso. Mas que é o mais romântico (não no sentido de boy meets girl, mas sim no sentido de madeleines cuja degustação provoca viagens ao tempo perdido), ora lá isso é. Quem já viu dias de tempestade com o mar a demolir o quebra mar, com as ondas alterosas a rebentarem contra as furnas, percebe isto.

The Bastard Operator From Hell

The Bastard Operator From Hell Complete
The Bastard Operator From Hell Oficial Archive
The Classic Bastard Operator From Hell

A obra literária que hoje apresento não se conforma com os altos padrões literários de uma A Misteriosa Chama da Rainha Loana ou às profundezas aterrorizantes da prosa de um H. P. Lovecraft. Trata-se de uma obra que seria impossível sem a tecnologia informática, sem redes e internet. Tudo, desde o tema à forma como foi escrito, só se tornou possível graças ao computador, linhas telefónicas, BBSs (sim, já é uma obra arcaica) e newsgroups.

Escrito em tempos mortos de longas sessões ao computador por Simon Travaglia, um administrador de sistemas, o BOFH foi sendo regularmente colocado em BBSs desde meados dos anos oitenta. Para grande surpresa do seu autor, o BOFH tornou-se uma das pedras basilares da cultura online, e ainda hoje é lido com grande prazer. Mas para explicar melhor a origem e o porquê do BOFH, deixo-vos com as palavras do seu autor:
I was an Operator at the University of Waikato, back in the heady days when "Helpdesk" meant nothing, diskquota meant everything, and lives could be bought and sold for a couple of pages of laser printout - And frequently were. We Operators had powers verging on the Technical-SuperHero. On one hand, we had the SYSTEM and root passwords, on the other hand we had the excuse "Really? I didn't know DEL *.*;* would do that - I'm just an operator..". All the power and none of the responsibility. Good Times. You could do ANYTHING to a user and no-one would know. Well, they'd know, but they couldn't prove anything.

Dos momentos de tédio entre backups e atribuições de quota de disco na mainframe, surgiu este anti-herói cínico e assustador, predador altamente evoluído das selvas de escritórios das sociedades modernas.

O que é, então, o Bastard Operator From Hell?

É a resposta aos vossos piores pesadelos. É aquele tipo, administrador de sistemas informáticos, que do seu cubículo controla tudo e todos na empresa. Mestre nas intricacias informáticas, o Bastard Operator From Hell existe específicamente para prestar ajuda. Como qualquer animal selvagem, o BOFH (como é amávelmente conhecido entre amigos) não ataca se não for molestado. Bem, talvez ataque, se se sentir mesmo muito entediado. Mas se o molestam, ou seja, se lhe telefonam com um pedido de ajuda, bem... segue-se o caos. Tudo pode acontecer. Aqueles ficheiros informáticos com anos de trabalho na tese de doutoramente? Click Clack do teclado e... caro utilizador, enganou-se ao digitar o comando que lhe indiquei... todo o seu trabalho se encontra irremediávelmente perdido. Qual é o seu nome de utilizador? Click Clack do teclado e... caro utilizador, devo informá-lo de que já não existe. Aquelas diskettes originais que vinham com o computador? Para instalar correctamente o programa, insira a primeira diskette e faça fdisk. Backups? Não se esqueça de danificar a penúltima diskette. A rede não funciona? O computador tem um comportamento errático? Isso provávelmente deve-se ao efeito doppler, ou à electricidade estática provocada pela presença de réguas de plástico, ou a tempestades solares, ou a intereferências electromagnéticas provocadas por destroços de satélites, ou a electricidade estática provocada pelo uso de roupa interior em Nylon.

O BOFH não é alguém que se deva irritar. Se a mais pequena frase lhe soar mal, teremos a certeza que de as finanças vão receber todos os nossos dados financeiros detalhados, preparadinhos para um processo por fuga milionária de impostos, e vemos o nosso nome e fotografia na lista dos dez criminosos mais procurados. O BOFH, como um deus omnipotente e omnipresente, verifica o conteúdo de todos os e-mails que circulam e podem ter a certeza que aquela proposta privada para uma noite caliente com aquela secretária loura boazona vai ser lida acidentalmente por todo o escritório, ou que as propostas homossexuais do machão do escritório acidentalmente espalhar-se-ão por toda a internet.

O BOFH existe, um omnipotente deus perverso, para prejudicar aqueles que ajuda. O BOFH vale-se da ingorância dos utilizadores (lusers, contracção entre users - utilizadores, e losers - zeros à esquerda) e da sua cega confiança nos conhecimentos arcanos de informática do BOFH para os humilhar, destruir, ridicularizar e, em casos extremos, eliminar.

Não se metam com o BOFH, e ele talvez não se meta convosco.

Adrian Tomine, II

Ontem ocorreu-me a frase perfeita para caracterizar o trabalho de tomine. Estava numa festa, naquela altura morta em que o alcool ainda não atingiu os centros cerebrais e as pessoas olham umas para as outras sem saberem o que dizer, mesmo já se conhecendo à anos. Velhos amigos sorriem, olham uns para os outros com um olhar ausente, tentam iniciar conversa, mas não pega. Frases são iniciadas, mas ficam no ar, recebidas com acenos de cabeça pelos restantes convivas. São os primeiros minutos de uma festa, minutos que sabem a horas. São os tempos mortos que revelam bem os vazios das relações humanas, os vácuos onde o cérebro amolece e se torna incapaz de se manter sociável.

(Por isso é o futebol e os carros no caso masculino, e as gorduras e as dietas no caso feminino, são temas de conversa tão explorados. Permitem dizer sem dizer nada, falar sem transmitir conteúdos, espremer o fruto sem sumo.)

Eu, tendo as capacidades sociais de uma amiba (e isto num dia bom), sou particularmente sensível a estes momentos de vazio.

Tomine explora magistralmente estes vazios. O seu olhar disseca o vácuo das relações humanas, o espaço negativo entre conversas definido por olhares e trejeitos de expressão.

quinta-feira, 21 de julho de 2005

Adrian Tomine



Comic Art Collective | Art by Adrian Tomine
Comic Creator | Tomine
Slate | Tomine by Tomine
Interview with Adrian Tomine
Jason Pettus | Tomine
Amazon.Com| Adrian Tomine 32 Stories

Estava aqui à dias a vasculhar uma prateleira esquecida na Fnac de Cascais quando deparei com uma verdadeira preciosidade: um livrinho intitulado Les Yeux à Vif, escrito e desenhado por Adrian Tomine. O nome do autor não me era desconhecido, apesar de nada saber sobre ele. A minha primeira referência a Tomine surgiu em conversa com um daqueles amigos a quem se perde o rasto e o contacto. E até há poucos dias, nunca tinha lido nada de Tomine.

Pelo que consegui descobrir através do google, Tomine é um criador de Banda Desenhada Underground que publica o seu comic, Optic Nerve, e já apresenta algumas colecções publicadas. As suas histórias também serviram de base a uma peça de teatro. Tomine foi um criador precoce - as suas primeiras edições, fotocopiadas, foram publicadas ainda ele era estudante num liceu. E, apesar de criador de B.D., Tomine concluiu um curso de literatura.

As histórias de Tomine são fascinantes. Histórias curtas, desenhadas com um traço limpo e sincrético, que se concentra no essencial da vinheta sem se abrir em quadros de grandes pormentores detalhados. Esta é uma característica visual que Tomine partilha com a melhor B.D. underground que conheço, com um estilo visual limpo, pouco elaborado, que se concentra mais nas emoções que transmite do que na espectacularidade da vinheta de B.D.. Com características semelhantes, lembro-me de Daniel Clowes, autor de Ghost World, publicado pela Devir com o título Mundo Fantasma, e provávelmente impossível de encontrar nas livrarias, e de Jar of Fools, uma apaixonante obra de Jason Lutes, que não perdia nada se fosse traduzida e publicada em portugal.

Tomine enquadra-se num estilo de B.D. que se concentra nos pequenos nadas carregados de emoção do nosso dia a dia. Aqueles pequenos gestos que nos fazem para um bocadinho, os rostos que passam por nós e nos despertam a atenção, aqueles segundos que paramos dentro do carro depois de o estacionar e antes de abrir a porta e regressar às ameaças do mundo, aqueles momentos de puro silêncio quando se desperta a horas desumanas e nos levantamos, sós na noite, iluminados pelas luzes frias das cozinhas, somente nós e a escuridão, os momentos de silêncio impregnados de simbolismo entre conversas animadas, a nossa triste e inócua hipocrisia do dia a dia quando nos relacionamos com os que nos rodeiam. Aqueles pequenos gestos de hipocrisia, como não declarar quando recebemos mais troco do que aquele que nos é devido, aqueles cinco minutos que roubamos ao início das aulas, as acelarações desnecessárias e as apitadelas por despeito de que todos somos culpados quando conduzimos.



Tomine fascinou-me pelas pequenas histórias inspiradas nos pequenos nadas do dia a dia, como a das recordações de antigos almoços, em que uma mulher idosa prepara uma sandes e come-a dentro do carro do marido, recordando aqueles pequenos momentos em que, quando jovem, as suas colegas de trabalho a invejavam por ela ter alguém que a vinha buscar para almoçar, naquele mesmo carro em que ela agora come a sua sandes em silêncio. Nós não sabemos se o marido morreu, ou se é mesmo marido, ou se seria apenas namorado ou amante. Tudo o que sabemos é que esta mulher, no ocaso da sua vida, come uma sandes num carro velho, recordando momentos passados. Nós, leitores, somos obrigados a imaginar para completar o que falta à história, para podermos lê-la e, satisfeitos, tirar conclusões. Mas tal como é, a história é perfeita, enredando-nos num momento da vida. Tomine aposta na beleza inefável do inacabado (ok, já estou a usar palavras caras e adjectivos farsolas, significa que está na hora da pausa para um cházinho).

Noutra história, Tomine conta-nos as aventuras de um rapaz que se vê obrigado a procurar um emprego de verão. Apesar de perfeitamente normal, fundamentalmente bom, no emprego o rapaz revela-se totalmente hipócrita, sorrindo e falando como amigo aos colegas de trabalho que intimamente despreza, roubando materais da loja onde trabalha, e aproveitando as entregas que faz para ficar em casa dos amigos, telefonando ao patrão a dizer-lhe que se atrasou na entrega porque apanhou engarrafamentos.

Um homem perde o avião por causa de atrasos no trânsito. Perante a perspectiva de passar a noite no aeroporto, decide regressar a casa, mas ao chegar à porta volta atrás, pois iria assustar o companheiro de apartamento. Dirige-se a casa da namorada, mas ao chegar à porta volta atrás, pois não quer voltar a despedir-se dela, e ainda está indeciso sobre se a ama realmente. Decide ir ter com amigos, mas muda de ideias, pois não quer repetir todos os rituais da despedida. Acaba por passar a noite num hotel.

Mas a mais brutal das histórias de Tomine passa-se num apartamento, onde um casal se diverte a ver, pela janela, os actos sexuais dos vizinhos da frente. A história termina numa nota triste, com o homem, acometido por medo e vergonha, abraçado à mulher que, minutos antes, tinha ido buscar uns vodkas para saborear com o espectáculo das vidas alheias.

Pequenas hipocrisias, recordações momentâneas, medos injustificados, ideias paralisantes, obsessões minuciosas. É a vida, não a vida das grandes ideias da grande literatura, mas a vida do quotidiano, dos detalhes do quotidiano, que desfila nas páginas de Tomine. Só me resta que a Devir, ou qualquer outra editora sobrevivente do boom de 2002 (ano em que surgiram quase uma dezena de editoras de B.D. cá pelo nosso portugal dos iletrados), se lembre de editar as obras primas de Adrian Tomine.

Telefonema



Fiquei ontem profundamente surpreendido por um telefonema. Toca o telefone, uma voz que não reconheço diz "não acredito", e chama-me pelo nome. Então reconheci a voz, e um turbilhão de emoções e recordações invadiu-me. Tratava-se de uma velha amiga, alguém que numa altura da minha vida foi extremamente importante para mim, e que depois se foi afastando, tal como eu me fui afastando, mais uma amizade vítima das rotinas diárias do quotidiano, vítima da luta pelas responsabilidades do dia a dia, que nos ocupa o cérebro como um cancro que devora o melhor de que há em nós.

Ela é aquela típica pessoa em que se pensa quase todos os dias, por uma qualquer razão ou outra, e no pensamento surge logo aquela resolução de telefonar, ou mandar um e-mail, para saber alguma coisa dela. Novidades. Um simples olá. Mas essa resolução nunca é cumprida, há sempre algo mais premente a fazer. E assim as pessoas afastam-se, as geografias alteram-se, e quanto mais tempo passa maior a vergonha de tentar falar, saber se está tudo bem.

"Olá, como estás, e então, novidades?"

Sei bem o cabrão que sou, e já perdi a conta aos amigos que deixei sair assim de fininho da minha vida. Apenas me regojizo com o facto de saber que todos somos assim, que não sou o único cabrão que não telefona, nem dá notícias. Somos todos assim, enredados no imediato e esquecidos do que deveria durar muito tempo.

Fiquei contente, embora desconcertado. É difícil, depois de um longo silêncio, voltar a pegar nas pontas e falar. Mas isso resolve-se, quebrando o silêncio. Ouviste, amiga?



Por isso, cá vão estas imagens. Isto é a minha vida, a minha vila, os meus crepúsculos. Aquele pequeno detalhe de aturar os putos do concelho de mafra é só para arranjar dinheiro para pagar o meu estilo de vida à beira do mar da ericeira.

Um abraço para ti, amiga, ainda apesar dos anos e da vida que já nos separam, e a todos aqueles amigos esquecidos, recordados apenas num fugaz momento que a vida e a preguiça não nos deixam agarrar. E, já agora, é este o teu blog?

Rabiscos



Mais um rabisco, cruzamento entre um jagoz e um monstro marinho de Athanasius Kircher

O que não se pode dizer

O que nós gostaríamos de dizer sobre os nossos alunos, mas não podemos dizer (pelo menos na cara de quem deveria ouvir):

"It’s a funny thing about mothers and fathers. Even when their own child is the most disgusting little blister you could ever imagine, they still think he or she is wonderful.
Some parents go further.They become so blinded by adoration they manage to convince themselves their child has qualities of genius.
Well, there’s nothing very wrong with all this. It’s the way of the world. It’s only when the parents begin telling us about the brilliance of their own revolting offspring, that we start shouting, “Bring us a basin! We’re going to be sick!”
School teachers suffer a good deal from having to listen to this sort of twaddle from proud parents, but they usually get their own back when the time comes to write their end-of-term reports. If I were a teacher, I would cook up some real scorchers for the children of doting parents. “Your son Maximilian,” I would write, “is a total wash-out. I hope you have a family business you can push him into when he leaves school because he sure as heck won’t get a job anywhere else.” Or, if I were feeling lyrical that day, I might write, “It is a curious truth that grasshoppers have their hearing organs in the sides of their abdomen. Your daughter Vanessa, judging by what she’s learnt this term, has no hearing organs at all."


Pelo menos segundo Roald Dahl, autor de Charlie and the Chocolate Factory, provávelmente o mais bizarro dos livros de literatura infantil.

quarta-feira, 20 de julho de 2005

Homem na Lua



Wikipedia | Apollo 11
Nasa
Google Maps | Moon Landing Sites

20 de junho de 1969. Há 36 anos, alunava o módulo eagle sobre a superfície do mar da tranquilidade na Lua. Neil Armstrong dava o primeiro passo de um homem na superfície de outro corpo celeste e dizia a inesquecível frase That's one small step for [a] man, one giant leap for mankind.".

Foi o culminar de um sonho que pouco mais avançou do que a lua. Gostaria que todos os dias fossem dias como este 20 de junho, dias em que olhava para o céu e via a humanidade no seu melhor, a colonizar o espaço sideral. Mas esse sonho anda longe, com uma estaçãozita espacial quase esquecida e um elefântico space shuttle constantemente avariado. Lá se vão as férias na lua com que eu sonhei quando tinha dez anos.

Os dias tranquilos.



São os dias de verão, caríssimo blog. Dias recheados de sol e calor, dias de praia refrescante. Dias de mergulhos no mar tranquilo, dias de risos de crianças a brincar à beira-mar. Dias sem preocupações, dias passados sem pensar. Os dias da silly season, os dias do ócio, os dias para parar, abrandar e gozar as coisas boas que a vida tem. Dias de leituras descontraídas, dias feitos de momentos passados a contemplar o brilho da luz e os jogos de cores na paisagem. Dias de puro céu azul, dias de mar transparente, dias de corpos arrepiados pelo primeiro toque das ondas frias. Dias de mergulhos, dias de sonecas bem dormidas à sombra de um chapéu de sol sobre o toque macio da areia.



Os dias tranquilos.

terça-feira, 19 de julho de 2005

Night of the Living Dead



Danse Macabre Iconography
Totentanz | Danse Macabre
Projecto Vercial | Noivado do Sepulcro | Soares dos Passos (1856)
Wikipedia | Ars Moriendi
IMDB | Night of the Living Dead (1968)
IMDB | Night of the Living Dead (1990)

O mais clássico filme de terror sub-género zombie foi realizado nos finais dos anos 60 por George Romero, guru do género cinematográfico. A Noite dos Mortos-Vivos é um filme aterrorizante, filmado num belíssimo preto e branco, com a banda sonora típica de um clássico filme de série B. A história é simples e resume-se em poucas linhas: um grupo desesperado tenta sobreviver numa quinta isolada aos constantes ataques dos mortos-vivos. O grupo desagrega-se, não é capaz de resistir ao terror e à ignorância paralizante. Os mortos-vivos, com o benefício de utilizarem o cérebro apenas para procurar comida, acabam por aniquilar os sobreviventes no final da hora e meia de filme.



Mas não é desse filme que quero falar. Quero falar do remake feito nos anos oitenta. Agora a cores, e dirigido (segundo sugestão do próprio Romero) pelo especialista em efeitos especiais gore Tom Savini, A Noite dos Mortos-Vivos dá-nos a cores, com mais pormenores, os medos e os terrores sugeridos no primeiro filme. Se no primeiro filme os zombies eram pessoas esbranquiçadas que se moviam lentamente de olhar perdido, neste remake os zombies continuam a ser pessoas que se movem lentamente de olhar perdido, mas agora com um aspecto verdadeiramente decomposto. A atenção dos peritos em efeitos especiais virou-se para os estudos forenses e autópsias, o que significa que os zombies são anatómicamente correctos nas suas equimoses, pele ensanguentada, feridas abertas e fracturas expostas. A tónica ideológica do filme também se altera - se o original A Noite dos Mortos-Vivos é um clássico do cinema de terror, com um grupo de pessoas a ser aniquilada por ameaças obscuras (e é esse o âmago de qualquer história de terror, o medo sufocante do desconhecido que nos aniquila), os restantes filmes da trilogia - Zombie: O Renascer dos Mortos Vivos e Dia dos Mortos-Vivos já são filmes que retratam a desagregação da sociedade perante a pressão e ameaça dos mortos-vivos, que aqui simbolizam terrores mais políticos. Consumo desenfreado, atitudes perante os vietnamitas durante a guerra do vietname, a fragilidade da sociedade, que entra em colapso perante a pressão exterior, e a barbárie em que os grupos de humanos decaem quando a anarquia reina - ideias preconizadas nos filmes de zombies que se tornaram dolorosamente reais na guerra da jugoeslávia.



Perante o filme de zombies, o zombie também representa a problemática sempre ameaçadora do outro. A problemática do outro? Esta é profunda.

Nós pensamos que um filme sobre zombies é um filme ridículo - mortos vivos, a arrastarem-se pelas ruas e a devorarem pessoas como nós? Absurdo. Mas ao olhar para os bairros sociais, para as minorias ciganas e africanas, para a emigração do leste, qual é a nossa reacção? Consideramos estes outros criaturas desprovidas de sentimentos, diferentes de nós, que vêm até cá devorar o nosso modo de vida. O racismo e a xenofobia são reacções viscerais. Comparem as imagens do arrastão de carcavelos com cenas clássicas de qualquer filme de zombies, com os mortos vivos a atacarem pessoas incautas?

Ou pensem na forma como olhamos para os chineses, essa massa humana de indivíduos indistinguíveis apostada em conquistar o mundo ocidental?

Pode parecer estranho, mas na realidade o cinema gore é um subgénero de culto bem sucedido. Porquê, então esta fascinação e esta apelatividade deste género cinematográfico, à primeira vista pouco importante (falo não só por mim, mas também por todos os viciados nas imagens de cadáveres putrefactos a devorarem intestinos e partes de corpos humanos)? O que é que nos leva a ver estes filmes, e a gostar?

Pergunto-me se há algum paralelo entre o cinema de terror gore, com as suas gráficas representações de cadáveres reanimados determinados em destruir os vivos e as representações macabras da idade média - as ars moriendi, as danças da morte. Tentará o cinema gore responder àquele apelo do nosso lado obscuro? Não esqueçamos que a nossa relação com a morte como algo sanitizado e evitável é recente. Nos séculos XVII e XVIII, uma moda recorrente nos salões aristocráticos era o estudo da anatomia - com dissecação de cadáveres. No século XIX, o fascínio do sepulcro, o apelo da morte, e a obsessão pelo suícido eram obsessão epidémica nas classes literatas - claramente, Werther, os contos de Edgar Allan Poe, Drácula e o bem português Noivado do Sepulcro não são obras isoladas no contexto artístico da época. E quanto ao fascínio macabro de mutilações sangrentas que é o que caracteriza o género gore, também não nos podemos esquecer que a pena de morte, como punição pública acompanhada de tortura, foi um espectáculo público regular até ao século XIX. A tranquila praça do comércio, em Lisboa, foi palco de horrendos espectáculos cortesia da inquisição. A revolução francesa tornou-se famosa pelas representações fatais no palco da guilhotina, com as famosas tricotteuses - as mulheres que faziam tricot enquanto os aristocratas eram decapitados. Ver a morte, nos seus aspectos mais revoltantes, era um espectáculo que atraía multidões, nos tempos antigos, sancionado pelas autoridades tanto pelos seus aspectos pedagógicos (ver o inimigo público a ser esquartejado, esfolado, lapidado, enforcado, queimado, garrotado, ou qualquer outro suplício criativo dos tempos antigos, não nos dá muita vontade de nos tornar-mos inimigos públicos) tanto por funcionar como válvula de escape para os instintos violentos da populaça.



Hoje esse tipo de condenáveis espectáculos são impossíveis, e felizmente. Sempre que me dizem que a sociedade não progride, que hoje são tempos mais inseguros do que antigamente, lembro-me sempre das gravuras da praça do comércio iluminada pelas fogueiras da inquisição. Mas o instinto anda por cá, dentro de nós, e é alimentado por uma comunicação social viciada em histórias de criminalidade, em lendas urbanas sobre filmes snuff e pelos filmes violentos (não estou a falar dos filmes gore, esses são inofensivos na sua obesseção por carne e tripas) povoados por heróis musculados que eliminam os seus inimigos com um máximo de estragos, explosões e tiroteios.

Só tenho uma pergunta: Land of the Dead, o último filme do Mestre George Romero, chegará a estrear em portugal? E senão, quando é que sairá em DVD?

segunda-feira, 18 de julho de 2005

A Criação de Haydn

Franz Joseph Haydn 1732-1809
Milton | Paradise Lost


Caríssimo Blog:

Ontem fui agradávelmente surpreendido pelo concerto da Orquestra Sinfónica Juvenil e do Coro de Linda -a-Velha na basílica do convento de Mafra. Tocaram a oratória A Criação de Joseph Haydn, obra criada a partir do poema Paradise Lost de Milton - um texto seminal da literatura do século XVIII, que conta a história da criação do ponto de vista do anjo caído. Uma obra revolucionária, pois olha para Lúcifer não como um demónio horrendo mas sim como uma alma superior, caída em desgraça devido ao seu orgulho.

Foi um momento de genial sensualidade musical, impecávelmente interpretado. Ouvir os sons românticos da oratória no ambiente luxuriante da basílica barroca, com o seu horror vacua no preenchimento de espaços, com todas as volutas e arquitraves, colunas e colunelas, estatuária de panejamentos esvoaçantes, debaixo da abóboda da basílica, foi um prazer adicional. Pelos momentos em que durou o concerto, outras épocas passaram, como se viagem no tempo fosse, um regresso a um passado inatingível. Certamente que os fantasmas de monges e aristocratas pararam um pouco as suas deambulações assombradoras e ficara ouvir, a recordar outros tempos que foram os seus.

Nas àguas transparentes lança-se o peixe,
enroscando-se em volta, num tumulto sem fim.
Das profundezas do mar revolve-se
Leviathan, sobre as vagas espumantes


Já estou a divagar, caríssimo blog, e quando isso acontece, começo a escrever mal. As combinações mais patéticas de palavras surgem-me na ponta dos dedos.

Como crítica possível à iniciativa da Câmara de Mafra de incluir estes concertos de música clássica gratuitos na programação das noites da cigarra (animação cultural nas noites de verão) poderia apontar o reportório tocado. Sabendo que a música clássica, apesar de importante, não é especialmente divulgada, este tipo de iniciativa deveria apostar num reportório mais acessível, tocando obras conhecidas, para atrair novos públicos. Na verdade, para quem não conhece música clássica, saltar logo para uma sinfonia de Haydn é uma experiência difícil. Os concertos programados apelam a uma audiência conhecedora, não a una audiência generalista. Não está em dúvida a qualidade dos intérpretes, nem a qualidade dos concertos. Só questiono a escolha de públicos. Depois queixem-se que ninguém vai ver concertos clássicos, que são sempre os mesmos elitistas que vão ouvir as orquestras e os quartetos de cordas. Enquanto houver este fosso entre o grande público e o veradeiro pináculo de beleza e excelência que é a música erudita, não se resolve o problema que é o desconhecimento de obras de grande beleza por parte de um público que, por entender a música erudita como inacessível e elitista, perde assim oportunidade de descobrir obras de uma beleza de tirar o fôlego.

Se bem que, caríssimo blog, o fosso entre artes e públicos em portugal não se restringe à música. O que é que vende mais, a grande literatura ou aqueles livrinhos de literatura light, com capas cor de rosa e histórias cor de rosa?


Mal posso esperar pelo próximo concerto, agora do Coro Gulbenkien, que nos vai dar uma lição de história de música portuguesa. Só espero que a direcção da fundação Gulbenkien não faça ao coro o mesmo que fez à companhia de dança...

domingo, 17 de julho de 2005

Kill Surf City

Wikipedia Pt | Franz Joseph Haydn
The Jesus and Mary Chain | Kill Surf City
The Jesus and Mary Chain

Caríssimo blog:

A noite tem destas coisas. Na eterna busca do local perfeito, da mistura exacta de bom ambiente e preços baixos, do sítio mais apropriado para beber um copo tranquilo com os amigos, acontecem acidentes de percurso. Foi assim que ontem dei por mim num locar perfeitamente dessincronizado com os fluxos cósmicos.

Chegar lá é fácil. Vai-se até S. Lourenço, com algum cuidado que de noite as curvas são traiçoeiras e as noites andam escuras. À saída de S. Lourenço, vira-se para os Casais de S. Lourenço, vira-se na primeira à direita e entra-se numa vivenda. Bem vindo aos Surfistas. Se se tiver sorte e a noite estiver animada, já pelas janelas do piso térreo se vê o jogo de luzes a revoar pela pista de dança, num refugo nostálgico da onda disco dos anos 70. Espera-se que o proprietário invista numa daquelas bolas espelhadas, para acentuar o efeito revivalista. Das janelas abertas dos pisos do rés-do-chão, antigas salinhas de estar, cozinhas, garagens, ou, talvez, cavalariças, ouve-se o som que o DJ de serviço põe a rodar, uma mistura de grandes sucessos ao melhor estilo ibiza summer festival (o que quer que seja que isso é) com o som das favelas de Lisboa, os melhores sucessos das grandes estrelas de kuduro da Cova da Moura e arredores.

Ao entrar deparamos com a versão século XXI da clássica tasca portuguesa, daquelas em que se pode cuspir para o chão. Os bancos corridos de madeira e as mesas de mármore foram substituídas por mesinhas de café, e por detrás do balcão as pipas de vinho carrascão foram substituídas por prateleiras cheias de garrafas de alcool mais nobre, mas o espírito mantém-se o mesmo. Temos aqui o clássico café da aldeia, cujo mais proeminente elemento decorativo são os poeirentos estandartes dos clubes de futebol, resquícios de jogos renhidamente disputados entre o fumo do tabaco e a frescura da cerveja que escorria pelas gargantas enrouquecidas pelos grunhidos de apoio ao clube.

Uma rápida exploração permite descobrir a sala disco, o espaço de música ao vivo, completo com um acordeão previdentemente guardado perto do microfone, o que nos permite perceber quais as bandas que fazem sucesso naquelas paragens. O espaço interior é entrecortado por colunas e arcos abertos em sítios onde outroura haviam paredes. Uma rede de vime disfarça mal a azulejaria tipo casa de banho, e à escolha temos sofás que não passam de estruturas metálicas cobertas de esponja e banquinhos que pelo seu tamanho não estariam nada deslocados dentro de uma sala de jardim infantil.

Se nos cansarmos de pular, digo, dançar os belos sons debitados pelo DJ, podemos sempre passar à sala de jogos, dominada por uma mesa de snooker onde as bolas curvam após a tacada (isto sou eu a disfarçar a minha azelhice inata ao jogo das tacadas e dos ângulos).

Caríssimo blog, seja bem vindo ao país real. Seja bem vindo aos espaços culturais e de lazer da outra metade do país. À terra do povão.

Os bons ambientes são feitos por quem os frequenta. E, para beber um copo com os amigos, descontraídamente, como convém nestes meses quentes de férias tranquilas, tanto serve uma tasca como o supra-sumo dos bares. Caríssimo blog, também não posso esquecer a generosidade do patrão da casa, que nos ofereceu uma imperialzinha, e ainda não o descobriu.

O surfista. Deixo-vos com as imortais palavras da canção Kill Surf City dos The Jesus and Mary Chain.

I'm gonna kill surf city, got to get me a gun
Got to fry surf city with a nuclear bomb
Got to get them all day


Esta noite, para purgar dizértes e ibiza summer festivals, sinfonias corais de Joseph Haydn na Basílica de Mafra. Hoje sim, será a sério.

sábado, 16 de julho de 2005

Os desertos



Caríssimo blog:

Ontem redimi centenas de pecados, em penitência única de sofrimento atroz. Mergulhei na massa fétida da humanidade e chafurdei nos esgotos culturais. Em suma, assisti a um concerto de uma boy's-band. Ao escrever esta frase, caríssimo blog, fui invadido por uma onda avassaladora de vergonha e curvei a cabeça, entristecido. Eu, num concerto. Num concerto de uma boy's band. Se alguem lá me viu, eu nego. Não, nada disso, viu certamente alguém muito parecido comigo. A essa hora estava a ouvir música, A l'ille de Gorée de Xenakis. Olhe que de noite todos os gatos são pardos. Garanto-lhe que não estava mesmo a ver esse concerto.

Mas estava.

Nos anos 70, o grupo de arquitectura teórica Archigram propôs, entre os seus projectos de urbanismo futurista de estética pop, a construção de gigantescos Instant City Blimps - Dirigíveis Cidade Instantânea, balões artilhados com ecrãs e sistemas de som que vagueariam pelos campos, vilas e aldeias levando ao interior isolado a cultura urbana. É um reflexo humorístico daquela ideia elitista de que só nos grandes centros existe cultura que se veja. A versão portuguesa desta ideia é a frase portugal é lisboa e o resto é paisagem, ideia que eu, caríssimo blog, tristemente admito que subscrevia inteiramente, até ter deixado de viver em lisboa e me ver obrigado a um exílio permanente na paisagem. Liberto do elitismo, fui obrigado a descobrir a vibrante cultura dos centros interiores, teóricamente empobrecidos pela sua distância do grande núcleo cultural. Certo, caríssimo blog, argumentas que não será, talvez, uma cultura tão sofisticada, que não podemos pôr no mesmo saco as tasquinhas de rio maior com a temporada de música da gulbenkien, que a temporada de ópera no s. carlos não é bem a mesma coisa que as festas da vila da ericeira. Mas o não ser sofisticada não implica que não exista, que é a visão elitista que se tem quando se olha para fora do grande centro. E é com essa ideia que os teóricos do Archigram brincavam.

Mas estou a divagar.

Ontem na noite de mafra, senti a vertigem que sentiria se fosse pobre e triste camponês a pastar as cabrinhas no monte e me passasse por cima um IC Blimp a bombardear-me com sons e imagens da cultura citadina. Talvez, quem sabe, ficasse extasiado imerso nas sonoridades, embevecido com as imagens, esquecido dos montes e vales que me rodeavam. E as cabrinhas também sentiriam, certamente, a imediata elevação do seu nível cultural. Mas a banda que tocou fez melhor do isso. Atingiu-nos com força avassaladora de um esquadrão de B2 a lançar um ataque táctico termonuclear. A força da música era tanta que à sua passagam nada mais deixava do que um deserto àrido e desolado, queimado e desprovido de qualquer forma de vida pensante.

Mas, se não perceberam, estou a falar do concerto dos DZRT ontem em mafra, como parte das noites da cigarra.

Dzrt faz mesmo pensa em deserto, que é uma palavrinha que define muito bem o nível cultural e musical da banda. Um deserto àrido. Só imagem, farsola e imediata para maximizar o lucro consumista. Uma típica boys band, produto comercial que apresenta rapazes dançarinos a pular ao som de ritmos básicos para delírio de pré-adolescentes (e desespero dos papás que têm de comprar o cd às filhas). Lixo puro. Fast food musical.

Temos uma imagem romântica das bandas. Um grupo de amigos e conhecidos que se junta, gosta de música, toca umas coisas, e enfia-se na garagem para afinar o som. É essa a génese das bandas que povoam os géneros musicais não eruditos, grupos de pessoas criativas que se juntam para criar música nova, excitante e vibrante. Seja blues, seja jazz, seja pop, rock, metal, electrónica, hip hop, drum n' bass, fusão... é o espírito imortalizado na canção dos Clash, Garageland:
Back in the garage with my bullshit detector
Carbon monoxide making sure it's efective
People ringin' out
Making offers for my life
I just wanna stay in the garage
All night
We're a garage band
We come from garageland


Caríssimo blog, é o espírito rock n' roll. O que irrita nas boys-bands como os dzrt é que... são personagens de uma telenovela... e os produtores, com olho para o cifrão, decidiram pôr a vida a imitar a arte... quebrar as barreiras entre o mundo anódino e cor de rosa da telenovela. E ecce homo, eis que surge a banda, imagem sem conteúdo, chouriço sem carne, joia de pechisbeque, fast food para cérebros adormecidos pelos desertos culturais. Onde é que está a espingarda para matar elefantes, que tanto jeito dava agora para rebentar com os miolos a esta gente?

Mas termino por aqui, que o sol está brilhante e o dia radiante. Deixo-vos com as imortais palavras de The Magnificent Seven, também dos Clash, que já falavam em lixo cultural nos anos 80:
Plato the greek or rin tin tin
Who’s more famous to the billion millions?


Caríssimo, quem é mais famoso, quem é?

sexta-feira, 15 de julho de 2005

Ninfas e Sátiros

William Bougeureau - Ninfas e Sátiro

Art Renewal Center | William Bougeureau

São elas as filhas de Zeus e do Céu. Nasciam da chuva que Zeus fazia cair, e povoaram os mares, as nascentes, os arvoredos, as florestas, as montanhas, as àguas, os rochedos e as grutas. Belos seres semelhantes a mulheres seminuas, povoam a natureza que nos rodeia, agindo benfazejamente sobre a natureza e, ternamente, ajudando, protegendo e inspirando os homens. Mas as ninfas não são todas iguais, não as confundam. As Nereides habitam os mares; as Náiades povoam os rios; as Dríades habitavam as florestas de carvalho; as Alseides viviam nas matas; as Oréades povoam as mais altas montanhas; as Hamadríadas faziam a sua casa nos bosques; nos vales viviam as Napeias e, sobre os freixos, habitavam as Melíades.

Fadas amorosas, que vigiam ternamente sobre a natureza selvagem e a natureza humana, são a juventude e a alegria do mundo. A sua contraparte, a força selvagem expansiva e ilimitada era personificada pelos Sátiros. Dotados de apetites insaciáveis, estes seres chifrados com o aspecto de pequenos homens percorrem os campos, prejudicando os homens com a sua força incontrolada. Eles são o lado violento da natureza, a contraparte ao lado idílico que as ninfas representam.

Dois lados da mesma moeda, duas faces da mesma entidade, duas forças opostas que se complementam.

28 horas

Educare | Ano Lectivo Começa Mais Cedo
Portal dos Professores | O novo ano lectivo

Tive esta manhã a oportunidade de ler o despacho enviado pela ministra da educação às escolas, com a calendarização do próximo ano lectivo. Primeira ideia a salientar: para além das 22 horas lectivas, os professores terão de permanecer mais horas na escola, estando essas horas contempladas nos seus horários, a perfazer um total de 28 horas por semana. Embora seja uma medida que me irrite, não posso dizer que discorde. Todos sabemos que o nosso horário é realmente de 35 horas, e pergunto-me quem é que realmente utiliza a componente não-lectiva para desenvolver trabalho. Infelizmente, bem se sabe que boa parte das pessoas não o faz, o que torna qualquer reclamação sobre esta medida indefensável. De certa maneira, esta medida vai-nos obrigar a mostrar o que fazemos. Pena é que a generalidade das escolas não ofereça condições para este género de trabalhos.

Outra ideia a salientar: as interrupções lectivas não deverão ultrapassar os cinco dias úteis para os alunos, o que implica que iremos perder as mini-férias de natal e páscoa. Nesses cinco dias, teremos de fazer as avaliações, uma vez que os conselhos de turma não devem ser realizados em tempo lectivo. Também não há outras interrupções do calendário lectivo, para além destas. É sempre a andar, meus senhores. Se o ministério paga, há que labutar de sol a sol.

As aparições públicas da ministra da educação costumam pautar-se por uma imagem apagada e incerta, que faz pensar que seria fácil fazer picadinho dela. Mas vejam bem as ordens que saem do ministério, e digam lá se esta mulher tem ou não tem tomates? Só pode, para fazer o que nos anda a fazer.

Última ideia: já que para o ano vamos andar todos feitos zombies, a deambular pelas salas de professores das escolas deste país, vejam o filme de Danny Boyle, 28 Days, uma homenagem a todos os filmes de zombies e gore que me surpreendeu pelo seu carácter mainstream.

Bronca, parte II

Ontem estava um bocadinho irritado com aquela história dos professores não saberem o que ensinar. A frase caiu mal, e com a comunicação social que temos, rápidamente se transformou em professores não sabem ensinar. Então, meus senhores, basta ver as notas de matemática...

Mas tive alguns remorsos com a violência das minhas palavras. E, por descargo de consciência, reli o artigo. Perdi os remorsos. E sublinho o que escrevi ontem. Mas agora não é por causa da frase. É por causa desta:

"Estes resultados exigem uma movimentação nacional e uma postura clara da administração central e regional. Isto não pode continuar a ser visto como uma fatalidade que leve apenas ao desencanto. Está na hora de agir"

Pois é. Não pode ser o ministério e administração a agir nisto. Se o fazem, fazem porcaria, comportando-se como elefantes numa loja de porcelanas. E lá vem mais uma revolucionária ideia de pedagogia de gabinete, em total incoerência com a realidade do país, que obriga os professores a repensar, pela enésima vez, o que andam a fazer.

Se queremos que isto mude, temos de ser nós a fazê-lo. E isso sim, seria uma novidade: uma revolução em portugal que viria de baixo para cima, e não ao contrário como sempre tem acontecido.

Enquanto andarmos a reboque de sebastianismo e ideias revolucionárias de um punhado de iluminados, estamos tramados.

quinta-feira, 14 de julho de 2005

O lado bom da vida

Image hosted by Photobucket.com

Nem tudo é mau. Olhem bem para este mar e este céu. A Ericeira tem estado irreconhecível, com um mar plácido, um calorzinho agradável, e sem vento. Dias belíssimos.

As horas perdidas

Diário de Notícias | Escolas vão definir tarefas de docentes fora da sala de aula
Portal dos Professores | Notícias de Educação

Caríssimo blog:

Ontem à noite falava-se. Aventavam-se hipóteses, brincava-se com a aberração que era a situação. E esta manhã confirmou-se. Uma concatenação cósmica de karmas negativos conjugou-se e abateu-se em força sobre nós, infelizes e desprevenidos docentes. Numa decisão que deixaria corroída de inveja a maior das damas de ferro (qual será, a britânica ou aquela alemã medieval que era instrumento de tortura? decidam, caríssimos e raríssimos leitores) a ministra da educação, cheia de fervor revolucionário, decidiu modificar os horários dos professores. Inspirada, quiçá, nos enganos finlandeses do magister presidente desta res publica sem bananeiras mas cheia de bananas.

Pois é, meus senhores, pensa o país cheio de encarregados de educação fartos de aturar os pirralhos, acabou-se a balda, senhores professores. As trinta e cinco horas são mesmo para cumprir. E têm sorte por ainda manter as vinte e duas horas lectivas semanais... por nossa vontade, seriam cento e sessenta e oito horas por semana, e ficaríamos enfim libertos da real chatice que é suportar os nossos queridos diabólicos terroristazinhos, tão engraçadinhos que eles são. E, por favor, senhores professores, não venham com tretas, com aquelas tretas de que as horas não lectivas servem para preparar aulas. Toda a gente sabe que as aulas não precisam de ser preparadas. É chegar e debitar. Agora, preparações, e tretas semelhantes. Nós bem sabemos que os senhores professores mal acabam as suas vinte e duas horinhas dão à sola da escola e vão para o café dizer mal de nós e dos nossos queridos querubins chifrudos, ou vão passear para os shoppings comprar tudo o que podem com os vossos altíssimos salários que são um peso desnecessário no erário público.

Que tal, caríssimo blog, esta minha incursão nas mentes da nossa espécie antagónica, a encarregadus de educaçãonus simplíssissimus?

No topo da sua pirâmide de secretários de estado e zelosos chefes de gabinete, rodeada de montanhas de papel como ídolos e ofertas votivas nos templos, a ministra da educação deve estar a sentir-se uma autêntica che guevara da teoria educativa portuguesa. Che guevara, que digo eu, a ministra deverá estar mesmo é a sentir-se uma lenine, ou, quiçá, uma estaline capaz de mudar toda a educação com um novo plano quinquenal de quatro anos. E por onde começar, por onde? Por essa classe convencida e preguiçosa que infesta como um vírus corrosivo as de outro modo perfeitas escolas portuguesas. Os professores.

Como professor, é-me indiferente ficar 22 ou 35 horas na escola. As planificações e projectos que faço na em casa também os faria na escola. Se tivesse espaço e materiais para isso. Que em nenhuma escola por onde passei tinha. Onde está o computador à minha disposição, e o espaço de trabalho - o gabinete, srª ministra? Não preciso de um tão grande como o seu, preciso mesmo de um. Porque isto de ir trabalhar para uma sala de professores apinhada não é ir trabalhar, é apanhar cotoveladas por falta de espaço, fumar mais cigarros do que aqueles que já fumo, e multiplicar exponencialmente as lamechices que se ouvem e falam sobre o desespero geral da educação hoje em dia, apimentadas aqui e ali com expressões de ódio à ministra e ameaças de aviões pilotados contra o arranha-céus da cinco de outubro. Qualquer professor profissional que queira fazer bem o seu trabalho passa seguramente mais horas do que o saudávelmente previsto a preparar o seu trabalho. Atrevo-me até a dizer que esta é uma daquelas profissões em que não há fins de semana, pois a cabecinha está sempre a trabalhar a pensar no que irá fazer na próxima semana. E acredite, srª ministra, a maior parte dos professores são profissionais dedicados. E continuam a sê-lo apesar das inúmeras tropelias revolucionárias dos ideólgos do seu minstério.

Caríssimo blog, a mim cheira-me um pouco a esturro, e não, não é o jantar que se está a queimar. Porque esta medida foi anunciada logo após os desastrosos resultados dos exames nacionais de matemática. Não há defesa possível da nossa parte, pois contrariar esta história dos horários só levaria a que nos acusassem de vampirismo pedagógico. Então, senhores professores, num momento de crise, com o resultado do vosso mau trabalho à vista, recusam-se a trabalhar mais para colmatar as deficiências dos alunos? Então para que servem? O esturro cheira com mais intensidade depois de ouvir alguns rumores de que o exame de matemática se centrava fortemente na geometria - a parte que, por estar no fim do programa, é menos abordada pelos professores, que passaram o ano a preparar os alunos no resto da matéria. Terá sido intencional, pergunto-me inocentemente com ar conspiratório?

Que bom. Os revolucionários iluminados do ministério, cheios de cursos superiores mas perfeitamente ignorantes da realidade do país real, lançaram mais uma revolução. Destinada, como todas as iniciativas criadas para aquele país utópico em que vivem os habitantes de gabinetes ministeriais, e falhar redondamente. Porque ter os professores 35 horas na escola não significa que trabalhem mais. São é mais duas ou três horas por dia de tempo perdido, porque sem condições não dá para fazer o trabalho, e o professor consciente fuma uns cigarros na confusa sala a abarrotar de professores, cumpre o seu horário, e findo este vai para casa trabalhar. A menos que o ministério ofereça portáteis ao corpo docente para que este tenha materiais para elaborar os obrigatórios planos, objectivos e relatórios dos projectos que terá de desenvolver. Ora esta, senhora ministra, é que era uma boa ideia. E nem precisava de ser um Toshiba Qosmio ou um iBook, qualquer máquinazinha com uma autonomia razoável de bateria e wifi incorporado. Srª ministra, já ouviu falar em pda´s? Já percebeu como eles poderiam ser úteis, substituíndo livros de ponto no registo de sumários e marcação de faltas, para além de todas as outras funcionalidades? Porque, srª ministra, se me vai obrigar a fazer o meu trabalho na escola (como deveria ser, não posso deixar de lhe dar razão), que condições me dá para o fazer? Ou está a pensar num retrocesso, aos velhos tempos dos manuscritos que demoram tempo a produzir, com um toque de modernidade que seria o uso de papel reciclado?

Bronca

Jornal de Notícias | Professores não sabem o que ensinar

"Tudo o que há é um currículo nacional, que define as competências essenciais na disciplina, mas que não são suficientemente concretas em cada disciplina. Nem por anos de escolaridade, nem por ciclos, os professores sabem o que concretamente devem ensinar"

Ainda por cima, caríssimo blog, neste mesmo dia assisto a broncas como as desta senhora presidente de conselho executivo que eu sinceramente espero que tenha proferido estas palavras fora de contexto. Se não o fez, é que é mesmo burra. Bronca e burra. Processe-me à vontade, que não é por isso que deixa de ser burra. Com que então os professores não sabem o que ensinar? Então a senhora conselheira executiva nunca se debruçou sobre o programa da sua disciplina e, com os seus colegas, não o articulou ao longo do ciclo, estruturando os conteúdos que os alunos irão aprender? Olhe que eu, e muitos colegas, fiz isso, que não passa de um trabalho tão básico, mas tão básico, que é quase um dado adquirido. Eu sei o que quero e tenho de ensinar aos meus alunos. Se não sabe, não me arraste nem aos meus colegas para o seu poço de incompetência.

Mas os seus comentários deram um belíssimo título de jornal. Gostei mesmo de me ver enxovalhado sem hipótese de defesa, pespegando a minha suposta incompetência, pois, uma vez que falou no plural, o seu comentário deverá ser estendido a toda a classe docente.

Confesso que até tem razão quando fala da ignorância do ensino secundário em relação ao que se passa no ciclo. Mas este foi um péssimo momento para declarar esta frase, com o ministério a aproveitar todas as oportunidades para denegrir a nossa imagem perante o público.

A senhora por acaso é loura? Um conselho: para dizer o que quiser, crie um blog. Não fale a jornalistas.

quarta-feira, 13 de julho de 2005

Post Scripts

Acabei agorinha mesmo de elaborar o meu relatório de desempenho como director de turma. Passei umas torturantes horas a tentar escrever a coisa - nesta altura do ano, aquilo que menos apetece é escrever relatórios que ninguém lê. Mas, na eventualidade de ser lido, elaborei um relatório à maneira, daqueles que abundam no sistema educativo. Apenas a modéstia me impediu de cair em grandiloquentes discursos do tipo eu quiz, eu sei, eu fiz, sou mesmo o maior. O que não impede o relatório de ter sido elaborado em eduquês, aquelas língua franca dos professores, propositadamente incompreensível e rebuscada, a disfarçar o vácuo das palavras. Não é que não tenha dado o meu melhor, mas há um certo odor a ridículo a perfumar estes relatórios. Olhamos para o nosso umbigo e dizemos, do alto da grandeza da nossa umbicidade, que somos bons. Eu não sou o meu melhor juiz. A indicação que fiz um bom trabalho está na maneira como alguns encarregados de educação me agradeceram (não são aqueles que me cumularam de louros, desses desconfio), da boa relação que tive com os alunos (que remédio, ou eram boas relações, ou então, meus meninos, a vossa vida vai ser infernal) e das palavras de apoio dos meus colegas de trabalho.

Postos isto, deliciem-se com estas pérolas de eduquês:
evidenciaram problemáticas de atenção/concentração, lacunas de metodologias de trabalho e estudo, comportamentos disruptivos, e, em alguns casos, deficiente acompanhamento familiar - tradução: o puto não estuda, está-se na tintas, porta-se mesmo muito mal e os papás estão-se completamente nas tintas para ele. A escola que o eduque.

Foram realizados esforços no sentido de integrar os alunos em grupo, tentando ultrapassar a falta de coesão da turma, e tentando incutir nos alunos o respeito pelas regras básicas de comportamento - tradução: portavam-se mal como o caraças, e o que era preciso era dar-lhes um bom par de estalos.

reuniões ordinárias de conselho de turma, procurando que estas fossem organizadas e estruturadas para que o trabalho necessário fosse realizado de forma eficiente - tradução: ou as coisas já iam feitas ou então seria uma reunião muito looonga.

contactos mais regulares com os encarregados de educação dos alunos que apresentavam comportamentos disruptivos - tradução: os putos chateiam-me, eu chateio os papás. Lógico.

contacto regular com os encarregados de educação é fulcral para o bom funcionamento do trabalho de direcção de turma - tradução: os filhos são vossos, não meus. Aturem-nos.

Imaginem agora que eu escrevia preto no branco no relatório. Era depenado. Mergulhado em azeite a ferver. Serviria de alvo para tiro com facas rombas. Soltavam os cães de ataque à minha passagem.

Para descomprimir:
Heavy Metal. Não é para olhos inocentes (cliquem, seus pervertidos, cliquem).
Simon Bisley Online. Não é mesmo para olhos inocentes e espíritos puros. Cliquem à vontade, que aqui na net ninguém vos vê (pensam voçês, está neste momento um hacker na roménia ou na bukovinia de cima a tentar avariar o vosso querido computador).
Infinity Plus. Não há que enganar, quatro novas histórias de ficção científica de Bruce Holland Rogers para ler. Quatro de uma vez. Ele há horas de sorte.

Science et Vie Aviation 2005

Image hosted by Photobucket.com

NASA Dryden | Research Aircraft
US Military Aircraft
Science et Vie
X Planes data site
X Planes
Nova Online | Battle of the X Planes


Tenho estado a ler a Science et Vie Aviation 2005 e cheguei a algumas conclusões deprimentes. Como aficionado que sou pelo mundo da aviação de alta tecnologia, é decepcionante ver o pouco que a tecnologia evoluiu nestes últimos vinte anos. Os aviões de combate do presente e futuro de há vinte anos atrás ainda continuam a ser os aviões de combate do presente e futuro. O F-16, por exemplo, apesar de ter feito o primeiro voo em 1975 (tem a minha idade) ainda é o mais moderno caça em serviço. O super-projecto F-22 parece que já está quase pronto a chegar às esquadrilhas norte-americanas, e quanto ao Eurofighter Typhoon... ao fim de décadas de desenvolvimento, também já só falta o quase para chegar às esquadrilhas britânicas, alemãs, francesas e espanholas. A aviação civil é dominada por dois gigantes, a Airbus e a Boeing, que monopolizam um mercado aeronáutico de máquinas espantosamente complexas e caras.

Olhando para a história da aviação, esta é uma altura deprimente. Os requisitos técnicos para criar um avião são hoje tão caros e complexos que um projecto demora décadas a estar concluído. E falamos de um projecto... nos anos 30, 40, 50 e 60 deste século havia imensas companhias, cujos nomes ficaram ligados a aeronaves imortais, capazes de criar projectos arrojados. Hoje, há um punhado. A excitação da criação de um Spitfire, de um Messerchmit Me262 (o primeiro caça a jacto), de um F-86 Sabre, de um F-4 Phantom, e de tantos outros projectos bizarros, fascinantes e avançados (como a asa voadora da Northrop, ou os lifting bodies, aviões que prepararam o terreno para o vaivém espacial) perdeu-se, transformada em burocráticos consórcios que constroem máquinas caríssimas e altamente complexas.

Viciei-me na aeronáutica na minha adolescência, onde descobri o fim da vida das máquinas aéreas clássicas e fiquei excitado ao descobrir as (na altura) novas máquinas. Quando comecei a descobrir o mundo da aviação, os veneráveis F-4 phantom, os Starfighters, os Migs 21, os Mirages ainda voavam, excitantes, e as novas promessas dos F-15, F-18, F-16, Harrier, Mig 29 e Sukhöi 27 estavam prontas a descolar. Quinze ou vinte anos depois, pouco mudou.

Image hosted by Photobucket.com

Há excepções. Para máquinas menos complexas, mas modernas e de alta tecnologia, temos sempre o sueco Saab Gripen e o francês Rafale. São projectos que desafiaram a complexidade dos F-22 e dos Typhoons, desenvolvidos independentemente com recursos nacionais. E conseguiram voar, prontos para o serviço operacional, antes do F-22 e do Typhoon.

Onde ainda resta algum do espírito inovador aeronáutico, o espírito dos aviadores europeus dos inícios do século XX (não falo aqui dos irmãos Wright, que tentaram fazer à aviação o mesmo que as editoras de música estão a tentar fazer à internet - paralizá-la com processos de direitos de autor), é do domínio dos UAVs - Unmanned Aerial Vehicle, aviões não tripulados. Aí sim, sucedem-se projectos arrojados e excitantes.

E é melhor nem falar da astronáutica, que sobrevive com os STS (vaivém espacial) que representam o pináculo da tecnologia dos anos 70 (do princípio da década, nem mais) e com as cápsulas Soyuz, um design dos anos 60. Onde estão as bases lunares, as colónias orbitais e as expedições tripuladas aos confins do sistema solar?

A Misteriosa Chama da Rainha Loana

Image hosted by Photobucket.com

Umberto Eco | A Misteriosa Chama da Rainha Loana

Estou apaixonado pelo último livro de Umberto Eco, A Misteriosa Chama da Rainha Loana. O livro fala-nos das experiências de um homem, calmo bibliófilo de Milão, que após sofrer um AVC perde todas as memórias de si próprio. Não sabe quem é, nem conhece quem o rodeia. Tem de voltar a aprender a ver e a fazer todas aquelas coisas que, na vida, damos como garantidas. Apesar de ter perdido a sua memória sensorial, Yambo, a personagem principal, não perdeu a sua memória semântica. Embora os rostos dos familiares, da mulher e dos filhos não lhe digam nada, a sua mente revolve-se com citações literárias e a contemplação de livros levam-no a pensar se, através da recordação da sua história literaria, a sua vida de papel, conseguirá recuperar as memórias de uma vida. Assim, nos sotãos e gabinetes da casa dos seus avós, onde passou os anos formativos da sua juventude, Yambo reaprende-se relendo os livros da juventude, voltando a ouvir os discos da sua mocidade. Revisita assim o passado de uma Itália que foi nacionalista e fascista, revendo as voltas do mundo nas italianizações das personagens de banda desenhada, relebrando os horrores do fascismo nas canções patrióticas que memorizou. E questionando-se, sempre, como homem sem memória, sobre como realmente seriam aqueles tempos, no que é que realmente pensava. O que é que seria mais importante, o hino dos balillas (organização fascista infantil, semelhante à mocidade portuguesa) ou as canções populares da altura, cançonetas sobre singelas donzelas e vidas tranquilas?

Um segundo avc apanha Yambo embrenhado nesta selva de personagens de B.D., canções ouvidas em velhos discos de 78 rotações, jornais e revistas empoeirados e romances juvenis. Para se recordar de si, Yambo recria-se tentando perseguir o que sentia ao misturar Flash Gordon com Lili Marlene, ensaios sobre a itália fascista e o rato mickey, a ideologia militarista do regime e a honra exótica de Sandokan. E é na inconsciência deste seu segundo AVC que Yambo se redescobre, recordando episódios dolorosos da segunda guerra, redescobrindo a sua juventude idealista, repartida, à semelhança de Stephen Dedalus, personagem do imortal Retrato do Artista quando Jovem entre ideais de pureza e de pecado.

Como fio condutor, a chama que toca o coração de Yambo, está o rosto esquecido da primeira mulher que amou, e da qual reencontra partes em fotografias de actrizes dos anos 30 e nas outras mulheres que amou.

A Misteriosa Chama da Rainha Loana é um livro repleto de homenagens à cultura popular dos anos 30 e 40 do século XX, bem como um repensar da história italiana. E é também uma obra nostálgica, que através da descoberta da infância de Yambo nos leva a pensar na nossa própria infância, no que liamos e viámos, e como isso nos modelou de tal maneira que, em adultos, agimos condicionados pelas nossas descobertas infantis sem que nos apercebamos de tais condicionamentos. A Misteriosa Chama da Rainha Loana, de certa maneira, faz lembrar a obra tardia de Matisse, quando, quase cego e inválido, já não pintava, mas compunha imagens cheias de vida e beleza a partir de tiras rasgadas de papel pintado. A Misteriosa Chama da Rainha Loana é, também, composta de retalhos, os retalhos sempre desvalorizados que são o produto da cultura popular, cultura de consumo fácil e efémero.

A Misteriosa Chama da Rainha Loana faz-nos pensar que, por muito que valorizemos a cultura com letras maiúsculas, a cultura da ópera, música clássica, da literatura e arte rarificadas e inatingíveis, relembramos sempre com mais saudade a cultura popular. Porque se a cultura erudita de destina à imortalidade, a cultura popular diverte-nos. E ao olhar para trás, ao olhar para os anos de ouro da juventude, são essas as recordações de nos despertam as chamas interiores.